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TRADUTOR

Monday, August 29, 2011

O HOMEM QUE ABRIU O MUNDO




Exceto o homem, nenhum ser
se maravilha por existir”.
Schopenhauer




                   Parecia não haver solução para o tédio. Tedium vitae, pensava. Talvez o problema fosse esse: pensar. Pensar o sentido da vida, afinal. Talvez houvesse grande solução na esquina. Talvez um estalo. Talvez um patrocinador. Talvez. Lembrava Virgílio. E Mecenas. Entretanto, o fato primeiro é o tédio. Não encontrava o sentido da vida. Convinha-lhe saber que era uma charada. Uma gincana. Um desafio desde os tempos de menino. Charada. Enigma. Adivinhação. Jogo. O jogo da vida. Lance de dados. Deus. Física. Lao Tse. Salomão. Mallarmè.
         Vez por outra jogava xadrez. Gostava de siciliana e de dizer que “o xadrez é como a vida”. Mas isso sempre acabava por perturbá-lo no íntimo. Qual era afinal o sentido da vida? Onde estava o segredo? Como chegar a esse tesouro de conhecimento? Como encontrar a pedra filosofal, fundamento para erigir os castelos da alma?
         Fazia arte. Escrevia, desenhava, pintava, compunha. Tinha filhos, tinha mulher. Teve mulheres. Vira morrer alguns amigos, alguns parentes, conhecidos. Envelhecia. Àquela idade, era certo buscar o sentido da vida. Precisava ser rápido, agora. Sentia-se adulto. Homem. Decidido. Pronto. Faria o que fosse necessário.
         Como sempre urge, o tempo urgia. Então, novamente, o tédio. Precisava trabalhar. Precisava ser rápido. Não era um homem de posses. Sua riqueza era pensar. Pensava. O trabalho era-lhe enfaro. Queria filosofar. Queria viver. Queria escrever, desenhar, pintar, compor. Queria estar com os filhos, com a mulher, com os parentes, amigos, fazer orgias. Mas precisava trabalhar. Enfarava-se.
Precisava ser rápido. O sentido da vida escondia-se em um lugar diferente a cada dia. Sempre próximo. Podia estar na geladeira ou no carro. Podia estar na rua, na praia, no bar. De bares é fato que gostava bastante. Mas tinha que trabalhar. Parecia, realmente, não haver solução para o tédio. A não ser, é claro, pensar.
Pensar lhe inquietava. Mas também lhe acalmava. Opostos complementares. Física quântica. Coisas assim. Tinha filhos, tinha mulher. Teve mulheres. Muitas mulheres. Vira morrer alguns amigos, alguns parentes, conhecidos. Envelhecia. Aborrecia-lhe o fato de não poder parar de pensar. Mas, logo que pensava a fundo, emergia e se achava numa divagação sem idéias. Então suspirava, sorria.
Queria realmente encontrar o sentido da vida. Seria como um aleph, uma porta mágica, uma visão, uma panacéia, uma saída. Àquela idade, enfadado pelo trabalho, via-se na iminência de uma atitude definitiva. Haveria, sim, de atirar-se sem demora na única empreitada digna: buscar o sentido da vida. Senão, o que fazer? Matar-se?
Havia lido Dostoievski. Comer, beber, dormir, respirar, sujar, procriar... Para ele, era como voar, roubar, construir um ninho. Precisava de algo maior para alimentar o seu espírito altivo de “homem superior”. Ou então, que fosse animal mesmo. Pássaro, gato, urso...
É fato que a vida não deixa o seu sentido à mostra. Nem eu deixaria. Expor demais desvaloriza. Além disso, se o sentido estivesse à mostra, não haveria sentido em buscá-lo.
Busca-se o sentido da vida de várias formas. A primeira, quase sempre, é a religião. A crença na imortalidade da alma. Essas coisas. Porém, é preciso considerar que, àquela época, a mecânica sobrepunha espiritualismo e materialismo à força de probabilística. Além disso, para ele, o sentido da vida era charada, adivinhação, descoberta, magia...
Havia lido um pouco da bíblia e, se não me engano, em Eclesiastes, descobrira que não se deve querer saber tudo. Mas, como ele dizia: “a consciência é uma merda!”.
Acho que gostava dos russos. Falava quase sempre em suicídio por tédio. Falava do poema de Iessiênin. Recitava Augusto dos Anjos: “... Eu, filho do carbono e do amoníaco...” e também Macbeth, ato cinco, se me recordo com clareza. De minha parte, gostava de lembrá-lo de quequem prefira “a dor à morte e o inferno ao nada”. Baudelaire, naquele tempo, era comigo.
Éramos grandes amigos. Ele buscava o sentido da vida. Eu vivia. Por amizade, ajudei-o com a abordagem religiosa. Encontramos a única verdade confortadora: a vida eterna. Sem ela, a vida não fazia sentido. Não faz. Ainda creio. Aceito opiniões divergentes. Gosto de vê-las soltas. E é natural pô-las em vôo sobre tal assunto. Sei também que se pode banalizar, satirizar e destruir à moda de Sade. Mas, se nãoviagem nem destino, tampoucovida. Digo vida diferente de comer, beber, dormir, respirar, sujar, procriar...
Mas, deixemos o tédio. Assumo agora o compromisso de narrar somente o ocorrido. Não nos esqueçamos que ele buscava o sentido da vida. Chamei-o de homem superior. Sim. E peço agora ao leitor que assim o considere. Vamos retirar as aspas. Voltemos ao “voar, roubar, construir um ninho...”.
Ele queria a redenção pela arte e a salvação por Jesus Cristo, meu amigo. Redenção. Salvação. Arte. Será que era isso que ele buscava ao caçar incessantemente o sentido da vida? Quem sabe? Lembro-me, enquanto escrevo, do “Assim falou Zaratustra”. Lembro-me de “Uivo” e de “Kadish”.
Era um tempo de computadores. Inovações que se obsoletam como tudo diante do tempo. Lembro-me de Ovídio, como se pode lembrar. Penso em posteridade. Dói-me pensar em futuro. Devo admitir o contágio spleen & blues de meu amigo. Ele foi o primeiro.
Tentarei então ajustar a narrativa. Afinal, urgindo como o tempo urge, não temos um segundo a perder. Neste instante em que escrevo, da entrada, alguém grita: “Se vamos correr, não tenhamos pressa!”. Mas, deixemos isso de lado... Uma coisa no mundo une toda humanidade: a busca da felicidade. Entretanto, para o homem que abriu o mundo, a busca da felicidade era a busca do sentido da vida.
Como eu, estudara semiótica. Viajara. Sonhara. É estranho falar isso. Principalmente quando se está morto. Essa é uma época realmente terrível, não é? Talvez por isso você reverencie a minha sorte. Contudo, não se esqueça que é uma sorte de morto. Você sabe. Morri muito antes de você ler esta história. Penso que talvez seja difícil traduzir-me. Língua, frase, pensamento... Tempus edax rerumPalavra!
Morto. Ainda assim, penso no sentido da vida. Espero encontrá-lo, mesmo agora. Como esperas, esperarás. Mas, chegará a hora. Sei, desde garoto. Desde “Demian”. A ave sai do ovo. Igualitè, fraternitè, libertè, quae sera tamem.
Ele precisava ser rápido. O sentido da vida – pensava sem parar – escondia-se em um lugar diferente a cada dia. Sempre próximo. Podia estar na geladeira ou no carro. Podia estar na rua, na praia, no bar. Charada, enigma, adivinhação. Jogo. O jogo da vida. Lance de dados. Deus. Física. Lao Tse. Salomão. Mallarmè. Latim. Poesia.
Esperava por Deus. Tinha uma percepção diferente de zero. Como os fenícios. Pensava o “incontível”, não o vazio. No mais, precisava trabalhar. Não era um homem de posses. Sua riqueza era pensar. Pensava.
O trabalho era-lhe enfaro. Queria filosofar. Queria viver. Queria escrever, desenhar, pintar, compor. Queria estar com os filhos, com a mulher, com os parentes, com os amigos, fazer orgias. Mas precisava trabalhar. E precisava ser rápido.
Foi no ano de 1986 que o conheci. Lia Borges, Garcia Lorca... Calçava botas estranhas, de andarilho. Tinha uma peixeira. Pernambucana. Abria a vida à faca, a fogo e metáforas. Levei dezoito anos para me decidir a escrever sobre ele. Sua busca pelo sentido da vida não se encaixava em juízo de valores ou em qualquer base filosófica conhecida. Tampouco buscava a perfeição. Buscava o entendimento, a compreensão... O ‘sentido’, para ele, não era visto como objetivo ou propósito, mas como lógica, significado, senso.
         De minha parte, sempre achei a busca do sentido da vida maravilhosa. Principalmente pelo seu caráter altivo e inatingível. Naquele tempo, ação era comigo. No entanto, é preciso dizer que meu amigo tinha uma faca. Uma pernambucana. Uma peixeira. Não era lâmina, como a de João Cabral. Mas tinha dois gumes, feitos no esmeril. Era uma faca potencialmente bandida. Não como relógio ou bala, ou peso. Mas como faca mesmo.
         Há um fato importante que lembro ainda com muita clareza: o hedonismo. Bem certo que era mais cirenaísmo que qualquer outra doutrina. Aristipo de Cirene. Essas coisas. Hedonismo. A descoberta do hedonismo. Meu amigo tinha uma peixeira pernambucana e era hedonista naquele momento. Era uma época de computadores. Inovações que se obsoletam como tudo diante do tempo. Eu vivia. Ele, você sabe.
         Sentamo-nos à beira-mar. Dava pra ver a ponte. Tinha uma sombra fina de coqueiro sobre a amurada. Falou-me de desejo, de vontade, de necessidade, de prazer, de respirar, de gozar, de se embriagar, de viver e, pra ser sincero, falou coisas que agora não vou lembrar, embora não pra esquecer a impressão que me causaram. Bebemos, fumamos, gargalhamos e mais uma vez falamos, falamos e falamos. Tenho tatuadas na memória muitas imagens e muitas palavras daquele dia.
Os russos, suicídio por tédio, o poema de Iessiênin, Augusto dos Anjos e até Macbeth, ato cinco, cena cinco, se me recordo com clareza. “Arrasta-se neste passo sorrateiro dia após dia até a última sílaba de tempo”, disse. Fiquei calado. Não deu pra falar. Não deu pra argumentar. Ainda que Baudelaire, naquele tempo, fosse comigo.
Acendeu um cigarro vaporoso e desembainhou a faca. Uma peixeira pernambucana, que não era lâmina, como a de João Cabral. Mas tinha dois gumes, feitos no esmeril. Despediu-se de mim, dizendo que iria procurar novas charadas. Com delicadeza, afastou os pilares da ponte. Caminhou sereno sobre as águas e, com facilidade, graças aos dois gumes da pernambucana, cortou uma parte do céu. Pôs a faca entre os dentes, arrumou os cabelos e passou pela fresta.
Nunca mais tive notícia dele.
A fresta se fechou e tudo voltou à normalidade. Jamais descobri o sentido da vida. Apenas vivi. Comi, bebi, dormi, respirei, sujei, procriei. Também voei, roubei, construí um ninho. Adoro Baudelaire. Continuo hedonista. Cirenaísta, talvez. É estranho falar nisso. Principalmente quando se está morto. Essa é realmente uma época terrível, não é? Talvez por isso você reverencie a minha sorte. Contudo, não se esqueça que é uma sorte de morto. Você sabe. Morri muito antes de você ler esta história.





Excerto do romance “CARNAVAL”, Marcello Chalvinski – Brancaleone Editores. Arte: Tom Colbie.

Tira-gosto