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TRADUTOR

Wednesday, October 31, 2012

MURILOGRAMA PARA MALLARMÈ




No oblíquo exílio que te aplaca
Manténs o báculo da palavra

Signo especioso do Livro
Inabolível teu & da tribo

A qual designas, idêntica
Vitoriosamente à semântica

Os dados lançando súbito
Já tu indígete em decúbito

Na incólume glória te assume
MALLARMÉ sibilino nome







MURILO MENDES


In: Convergência. São Paulo, Duas Cidades, 1970.

Wednesday, October 24, 2012

MAYA NA WEBCAM





lembrando WCW e John Donne



pouca gente entendeu

quando a lolita do condomínio

esperou ficar sozinha em casa

para se masturbar

em frente ao notebook

na cama da mãe socialite

enviando depois a gravação

para os diretores da escola

respeitáveis homens e mulheres

que a comiam com os olhos

de segunda a sábado

mas que não seguraram a onda

e a traíram por pura covardia

quando o escândalo

veio a público

a família mudou de cidade

terapeutas & pastores entraram em campo

falando o que bem entendem

de herr freud e das escrituras

decididos a eliminar a doença

da mente e do espírito da garota

mas ela já estava em outra

meditando na freqüência de seu corpo

lendo reich marcuse jung

enquanto fingia aceitar a pajelança

sem ligar a mínima para aquela parte

de seu tenro passado

que ficou no ar

assombrando os sonhos de muitos

que nunca vão saber

quem de fato

era aquela garota

nem antes, nem depois

do que houve



(eu sou um que sabe...)











Fernando Abreu

Wednesday, October 17, 2012

VIDAS





I

Ó as enormes avenidas do país santo, os terraços do templo! O que foi feito do

brâmane que me explicou os Provérbios? Desde então, ainda vejo as velhas de

lá! Me lembro das horas de prata e do sol rente aos rios, a mão da campina no

meu ombro, de nossas carícias de pé sobre planícies de pimenta. — Um vôo

de pombos escarlates troveja em volta de meu pensamento. — Exilado aqui,

tive um palco onde encenar as obras-primas dramáticas de todas as literaturas.

Eu te mostraria as riquezas inauditas. Observo a história dos tesouros que

encontrastes. Eu vejo a seqüência! Minha sabedoria é tão orgulhosa quanto o

caos. Que é meu nada, perto do estupor que te espera?

II

Sou um inventor bem mais merecedor do que todos que me antecederam, um

músico mesmo, que descobriu algo assim como a clave do amor. Hoje em dia,

cavalheiro de uma campina amarga com um céu sóbrio, tento me emocionar

com a lembrança da infância mendiga, da aprendizagem ou da chegada em

tamancos, polêmicas, das cinco ou seis viuvezas, e de algumas bodas, onde

minha cabeça dura me impediu de seguir o diapasão dos camaradas. Não

choro mais minha velha porção de alegria divina: o ar sóbrio dessa campina

amarga sacia e ativa meu ceticismo atroz. Mas, já que não se pode fazer uso

desse ceticismo, e aliás, por estar envolvido num conflito novo, — espero

virar um louco muito perigoso.

III

Num celeiro aonde me prenderam aos doze anos, conheci o mundo e ilustrei a

comédia humana. Numa adega aprendi a história. Em alguma festa de noite,

numa cidade do Norte, cruzei todas as mulheres dos pintores antigos. Numa

velha passagem de Paris, me ensinaram as ciências clássicas,. Numa morada

magnífica cercada por todo o Oriente, terminei minha imensa obra e passei

meu ilustre retiro. Fermentei meu sangue. Minha dívida foi remida. Nem

quero mais pensar nisso. Sou mesmo do além, e nada de mensagens.





Rimbaud - Iluminuras

Monday, October 15, 2012

A POESIA





Por que tocas meu peito novamente?
Chegas silenciosa, secreta, armada,
como os guerreiros a uma cidade adormecida;
queimas minha língua com teus lábios, polvo,
e despertas os furores, os gozos,
e esta angústia sem fim
que acende o que toca
e engendra em cada coisa
uma avidez sombria.

O mundo cede e se desmorona
como metal no fogo.
Entre minhas ruínas me levanto,
só, desnudo, despojado,
sobre a rocha imensa do silêncio,
como um solitário combatente
contra invisíveis hostes.

Verdade abrasadora,
para onde me impeles?
Não quero tua verdade,
tua insensata pergunta.
Aonde vai esta luta estéril?
Não é o homem criatura capaz de conter-te,
avidez que só na sede se sacia,
chama que todos os lábios consome,
espírito que não vive em forma alguma
mas faz arder todas as formas
com um secreto fogo indestrutível.

Mas insistes, lágrima escarnecida,
e alças em mim teu império desolado.

Sobes do mais profundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Cresces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
a tua espada frenética.
Já somente tu me habitas,
tu, sem nome, furiosa substância,
avidez subterrânea, delirante.

Golpeiam meu peito teus fantasmas,
despertas com meu tato,
gelas minha fronte
e fazes proféticos meus olhos.

Percebo o mundo e te toco,
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.

Nuveiam meus olhos imagens opostas,
e às mesmas imagens
outras, mais profundas, as negam,
ardente balbucio,
águas que afogam uma água mais oculta e densa.
Em sua úmida treva vida e morte,
quietude e movimento, são o mesmo.

Insiste, vencedora,
porque tão somente existo porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer tão somente tua existência
e tuas secretas sílabas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.

És tão somente um sonho,
mas em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com tuas palavras.
Roço ao tocar teu peito
a elétrica fronteira da vida,
a treva de sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ávida ainda de destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a si mesmo,
porque não se detém de forma alguma
nem se demora sobre o que engendra.

Leva-me, solitária,
leva-me entre os sonhos,
leva-me, mãe minha,
me desperta do todo,
faz-me sonhar teu sonho,
unta meus olhos com óleo,
para que, ao conhecer-te, eu possa conhecer-me.


OCTAVIO PAZ



Tradução de Cleto de Assis

Thursday, October 11, 2012

É CRUA A VIDA.





É crua a vida. Alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

No estreito-pouco

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.



HILDA HILST - Alcoólicas (1990)

Tuesday, October 09, 2012

O HOMEM, A LUTA E A ETERNIDADE.




Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!


Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.






Murilo Mendes

Tira-gosto