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TRADUTOR

Thursday, October 27, 2011

I DRINK JACK DANIEL'S









Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
José Régio




sou menino

pequeno vendaval
de mãos pequenas
espiando todas as janelas

órfão de tudo
dileto enteado
do vento sul

já estive aqui
já estive ali
já estive fora
já estive em mim

vi muitas coxas & saias
vi raiva & vi navalhas
vi fornos
vi infernos & vi mortalhas

mas não há como conter
o turbilhão que se espalha

ser menino
traz desvantagens
ao espírito

nada há que me valha
se não crio desordem
minh’alma falha

eis minha mãe
guardiã de segredos
de terras distantes
de eras distantes
de um mundo distante


vivo,
tenho todo tempo que preciso
para criar rebuliço

armado de verbenas
& magnólias
parto ao meio
a luz das cidades
(orgulho-me de ser perigoso)

posso prescindir
do riso & do choro
posso prescindir enfim
de quem me console

neste setembro de sizígia
& agulhas perfurantes
feitas de mágoa
i drink jack daniel´s

(estou fora de controle)











MARCELLO CHALVINSKI - TEMPORAL

Tuesday, October 25, 2011

E ASSIM EM NÍNIVE






"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

"Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

"Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."







EZRA POUND [Trad.: Augusto de Campos]

ARTE: TOM COLBIE



And Thus in Ninive


"Aye! I am a poet and upon my tomb
Shall maidens scatter rose leaves
And men myrtles, ere the night
Slays day with her dark sword.

"Lo! this thing is not mine
Nor thine to hinder,
For the custom is full old,
And here in Nineveh have I beheld
Many a singer pass and take his place
In those dim halls where no man troubleth
His sleep or song.
And many a one hath sung his songs
More craftily, more subtle-souled than I;
And many a one now doth surpass
My wave-worn beauty with his wind of flowers,
Yet am I poet, and upon my tomb
Shall all men scatter rose leaves
Ere the night slay light
With her blue sword.

“It is not, Raana, that my song rings highest
Or more sweet in tone than any, but that I
Am here a Poet, that doth drink of life
As lesser men drink wine.”

Saturday, October 22, 2011

Canção do último encontro

.



Eu me sentia fria e sem forças
mas eram ligeiros meus passos.
Cheguei a pôr na mão direita
a luva da mão esquerda.

Pareciam tantos os degraus;
mas eu sabia que eram apenas três.
Em meio aos plátanos, o outono
murmurava: “Vem morrer comigo!

Fui enganada pelo meu destino
frágil, volúvel, maligno.”
E respondi: “Oh, meu querido,
eu também... morro contigo.”

Esta é a canção do último encontro.
De novo olhei a casa sombria.
No quarto apenas, brilhavam velas
com um fogo amarelado e indiferente.





Ana Akhmátova

DEPOIS DE TUDO*


Sempre acreditei que o término de um livro traz mais dúvidas que esclarecimentos. Se assim for, talvez isso ratifique que afirmação de ignorância é sabedoria e sirva, afinal, para alguma coisa. De qualquer forma, quando a capa se fecha naquele quase-sem-som, encerrando a leitura em escuros papéis, o livro é logo abandonado pelas mãos que antes, tão interessadamente, ajudaram a desnudar a intimidade orgânica de sua anatomia. 

Imagino, no exato momento desta separação, o olhar que o leitor constrói em direção aos seus pensamentos, evocando as lembranças de sua leitura acabada. O livro-lido será, a partir de então, um feixe de impressões holográficas, presas à memória por cordões tão frágeis quanto aqueles sonhos que às vezes amanhecem embaçando nossos olhos. Entretanto, a cumplicidade quase criminosa da leitura que o autor semeou em sua obra (ávido de colheitas), há de produzir frutos para tentar a alma a novas e instigantes incursões. Assim, ao tempo que esta leitura matreira definha, outra talvez mais tinhosa esteja nascendo ou preparando-se em conluios. É preciso agir para driblar a peste.

À leitura esquecida que se desfaz no esquife do livro, ocorre o mesmo que ao escritor, quando este humanamente morre. Tudo que sobra são vagas impressões. Mas o que seria da vida sem impressões? Não é acaso a vida uma ligeira impressão da eternidade? A quem pertencem as impressões? Não sei. Não cogito. Mas cheguei a maquinar:

Que impressões a leitura deste livro** terá de nós? Que pensará ela em seu sistema de códigos infinitos, rodeada de luas e anelada de combinações fantásticas? Nada, creio eu. Quando o livro é sepultado na prateleira, ela provavelmente já não pensa.

– Qual a cor dos olhos de Zeth***? – gritaria ela se pensasse, se sonhasse ou se quisesse de volta o tormento de seu atribulado ofício. Mas ela não o quer e preferirá fingir uma reclusão digna até que outras mãos e olhos vorazes a tomem por sedutora.

Ainda que os conhecidos olhos, que a desnudaram e abandonaram por primeiro, voltassem a pousar suas inquietações sobre a história, a leitura não lhes permitiria o prazer original dos primeiros encontros e trataria de livrar-se com seus terríveis ardis.

É preciso permitir que as impressões se façam e desfaçam nas paredes espelhadas do pensamento e esperar que os vermes do tempo devorem até a última lembrança, para que leitura possa sonhar em dar-se novamente.

De todo jeito, não se deve desesperar. Nunca. Qualquer leitura é dada ao desafio de existir e livremente escolhe os seus amantes, assim como nossos destinos nos escolhem.

Enquanto o autor trafica suas metáforas sinistras nas vielas alucinógenas da escrita, o leitor se esbalda e se arrisca em companhia de sua leitura mais nova e embriagante. Seja como for, todo livro tem o seu veneno que vicia.

O imaginário recriado pelo alfabeto há de ser o supremo deleite dos neófitos, a alegria orgástica dos viciados, a confusão senil dos teóricos e o terror apoteótico dos incautos. Seja a leitura a materialização do perigo, a certeza de bem e de mal, a descoberta de que há mais por descobrir e o sagrado risco de não se poder voltar.

Presumidamente, O Plano se conclui. Mais uma leitura se vai. Os perigos até aqui foram aceitáveis, mas a lucidez de quem escreve e de quem lê é o hímen de Pandora à mercê de males de todos os tamanhos. Por isso, neste momento em que o fechar da capa se aproxima, proponho ao leitor que clamemos em silêncio, por estas conturbadas páginas mortas: requiem aeternam dona eis! ****.
______________________________________________________
* Excerto de “O PLANO” [Marcello Chalvinski – SECMA/Prêmio G. Dias de Literatura].
** O PLANO
*** Personagem central d’O PLANO.
**** Dai-lhes o descanso eterno

Thursday, October 20, 2011

NÃO SEI DANÇAR


.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que eu sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.

Mistura muito excelente de chás...

Esta foi açafata...

- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex- prefeito municipal:
Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fração incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugêlê banzai!

A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Pra crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão de Seridó é o melhor do mundo?... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.

A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!


MANUEL BANDEIRA [Petrópolis, 1925]

Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.




Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.
"Sou do tamanho do que vejo!"Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão.
E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvageria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.
Mas recolho-me e abrando-me. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica sendo-me a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer."




Do Livro do Desassossego - Bernardo Soares (FP)

Wednesday, October 19, 2011

O MONSTRO

.





(Da Série Influências)


Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém criadas. Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole. Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida. Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.
Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe a alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.
- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia. A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira. Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os ursos, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...










Humberto de Campos

Quando Chegaste, os Violoncelos que Andam no Ar Cantaram Hinos.





(Da Série Influências)




Quando chegaste, os violoncelos  
Que andam no ar cantaram hinos.  
Estrelaram-se todos os castelos,  
E até nas nuvens repicaram sinos.  
Foram-se as brancas horas sem rumo.  
Tanto sonhadas! Ainda, ainda  
Hoje os meus pobres versos perfumo  
Com os beijos santos da tua vinda. 


Quando te foste, estalaram cordas  
Nos violoncelos e nas harpas...  
E anjos disseram : – Não mais acordas,  
Lírio nascido nas escarpas!  
Sinos dobraram no céu e escuto  
Dobres eternos na minha ermida.  
E os pobres versos ainda hoje enluto  
Com os beijos santos da despedida. 








Poema: Alphonsus de Guimarães
Arte: Tom Colbie

Tuesday, October 18, 2011

ESTA É A FORMA FÊMEA

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Esta é a forma fêmea:

dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo. 



Walt Whitman [Leaves of Grass]

DEPOIS DO DILÚVIO

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Assim que a idéia do Dilúvio sossegou,

Uma lebre se deteve entre trevos e campânulas cambiantes, e fez sua prece ao arco-íris, através da teia de aranha.
Oh! as pedras preciosas que se escondiam, — e as flores que já olhavam.
Na grande rua suja açougues se abriram, e barcos foram lançados nos degraus do mar lá no alto como nas gravuras.
O sangue correu, no Barba-Azul, — nos matadouros, — nos circos,
onde o selo de Deus empalidecia as janelas. O sangue e o leite correram.
Castores construíram. “Mazagrans” enfumaçaram os botecos.
Na imensa mansão de vidros ainda gotejantes, meninos de luto admiram imagens maravilhosas.
Uma porta bateu, — e sobre a praça da vila, o menino girou os braços, compreendidos os cata-ventos e galos dos campanários de toda parte, sob um temporal cintilante.
Madame *** instalou um piano nos Alpes. A missa e as primeiras comunhões foram celebradas nos cem mil altares da catedral.
As caravanas partiram. E o Splendide-Hotel foi erguido no caos de gelo e da noite polar.
Desde então, a Lua ouviu o uivo dos chacais nos desertos de timo, — e écoglas de tamancos grunhindo no pomar. Depois, na floresta violeta, florescente, Êucaris me disse que era a primavera.
— Lago, salte, — Espuma, role sobre aponte e por cima desses
bosques; — panos negros e órgãos, — trovão e raio, — subam e rolem; — águas e tristeza, subam e renovem esses Dilúvios.
Pois desde que dissiparam, — Oh as pedras preciosas se enterrando, e as flores se abrindo! — tudo é um tédio! E a Rainha, a Feiticeira que acende sua brasa num pote de barro, não vai querer jamais nos contar tudo o que sabe, e que nós ignoramos.

Artur Rimbaud [Iluminuras]

Monday, October 17, 2011

Fragmentos d'O LIVRO DO DESASSOSSEGO







...




"Não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decorrem da mesma íntima inconsciência que as vidas dos animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto em formação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado.


«Tudo vem da sem-razão», diz-se na Antologia Grega."
"A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos
homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra."


...


"Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto deperfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia."


...


"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos,quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."








Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

FADA









Por Helena conspiraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as luminosidades impassíveis no silêncio astral. O ardor do verão foi confiado a pássaros mudos e a preguiça pedida a uma barca fúnebre sem preço singrando golfos de amores mortos e perfumes esmaecidos.
— Após o instante da canção das lenhadoras, do rumor do temporal sobre a ruína dos bosques, dos tinidos de sinos de vacas ao eco dos vales, e do grito das estepes.
— Pela infância de Helena sombras e pelúcias arrepiaram, — e o seio dos pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e sua dança ainda superiores, aos brilhos preciosos, às frias influências, ao prazer da cena e dos raros momentos.





ARTHUR RIMBAUD [ILUMINURAS]

Friday, October 14, 2011

Estão Todas as Verdades à Espera em Todas as Coisas




Estão todas as verdades
à espera em todas as coisas:
não apressam o próprio nascimento
nem a ele se opõem,
não carecem do fórceps do obstetra,
e para mim a menos significante
é grande como todas.
(Que pode haver de maior ou menor
que um toque?)

Sermões e lógicas jamais convencem
o peso da noite cala bem mais
fundo em minha alma.

(Só o que se prova
a qualquer homem ou mulher,
é que é;
só o que ninguém pode negar,
é que é.)

Um minuto e uma gota de mim
tranquilizam o meu cérebro:
eu acredito que torrões de barro
podem vir a ser lâmpadas e amantes,
que um manual de manuais é a carne
de um homem ou mulher,
e que num ápice ou numa flor
está o sentimento de um pelo outro,
e hão-de ramificar-se ao infinito
a começar daí
até que essa lição venha a ser de todos,
e um e todos nos possam deleitar
e nós a eles. 



Walt Whitman [Leaves of Grass]

Tuesday, October 11, 2011

RECEITA DE MULHER





As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.




Vinícius de Morais

AQUELE CADERNO SOBRE A MESA DO CAFÉ


.


A mãe tem anotado num caderno um verso de Jorge Luís Borges. Diz ser sua a escritura que une em uma única linha morte e festa. Nunca suspeitara da existência do bardo dos labirintos, Shakespeare, espelhos, neblina. E como se não bastasse a solicitação de um mesmo ritual para quando do uso das duas mais altas máscaras de partida e chegada, a mãe também está ficando cega. Os móveis da infância há muito não estão no lugar. A memória não os organiza mais como lembrança. A presença esculpida como um cemitério de gestos e o olho que começa a mancar na escuridão, são os dois últimos legados de uma estrada comprida, vista da janela pelo filho, cujo silêncio é um ensaio para outra morte.




Dyl Pires

Monday, October 10, 2011

POÉTICA



.












Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o

cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora

de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário

do amante exemplar com cem modelos de cartas

e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.





MANUEL BANDEIRA

LAMENTO SOBRE O LAGO NEMI
















O azar é um dançarino nu entre os alfanjes.

Na praia, além do rosto, a corola das mãos.

Chama teu inimigo. O azar é dançarino.

Reúne os seus herdeiros e proclama o Talião.



A virgem que encontrei coroada de rainúnculos

Não era – assim o quis – a virgem que encontrei.

O azar é um dançarino; teme os seus alfanjes.

Amanhã serei morto, mas agora sou rei.



Nu entre os alfanjes, coroado de rainúnculos,

Chama o teu inimigo e a virgem que encontrei.

Na praia, além do rosto, eu agora estou morto.

O azar é um dançarino. Amanhã serás rei.















Poema: HAROLDO DE CAMPOS

Arte: Tom Colbie

Friday, October 07, 2011

O CORVO





Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
Pra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!





Edgar Allan Poe – Trad. de Fernando Pessoa 

TALVEZ CINEMA






trago na boca
um corte
&
o gosto estranho
das palavras
que esquecemos


o que restaria
de tudo que dissemos?

talvez cinema
talvez azul
talvez poemas...

nossas línguas
em linguagem única?
que eu ria
assim à míngua
do furor de minha fantasia!
depois de mim
o dia













MARCELLO CHALVINSKI - ANJO NA FAUNA & OUTROS POEMAS - BRANCALEONE EDITORES 1999

Thursday, October 06, 2011

UMA FACA SÓ LÂMINA






Para Vinícius de Morais





A

Assim como uma bala 
enterrada no corpo, 
fazendo mais espesso 
um dos lados do morto;
assim como uma bala 
do chumbo pesado, 
no músculo de um homem 
pesando-o mais de um lado
qual bala que tivesse 
um vivo mecanismo, 
bala que possuísse 
um coração ativo
igual ao de um relógio 
submerso em algum corpo, 
ao de um relógio vivo 
e também revoltoso,
relógio que tivesse 
o gume de uma faca 
e toda a impiedade 
de lâmina azulada;
assim como uma faca 
que sem bolso ou bainha 
se transformasse em parte 
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima 
ou faca de uso interno, 
habitando num corpo 
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse, 
e sempre, doloroso, 
de homem que se ferisse 
contra seus próprios ossos.


B

Seja bala, relógio, 
ou a lâmina colérica, 
é contudo uma ausência 
o que esse homem leva.
Mas o que não está 
nele está como uma bala: 
tem o ferro do chumbo, 
mesma fibra compacta.
Isso que não está 
nele como a coisa ciosa 
presença de uma faca, 
de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor 
dos símbolos usados 
é a lâmina cruel 
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica 
essa ausência tão ávida 
como a imagem da faca 
que só tivesse lâmina.
nenhum melhor indica 
aquela ausência sôfrega 
que a imagem de uma faca 
reduzida à sua boca.
que a imagem de uma faca 
entregue inteiramente 
à fome pelas coisas 
que nas facas se sente.


C

Das mais surpreendentes 
é a vida de tal faca: 
faca, ou qualquer metáfora, 
pode ser cultivada.
E mais surpreendente 
ainda é a sua cultura: 
medra não do que come 
porém do que jejua.
Podes abandoná-la 
essa faca intestina: 
jamais a encontrarás 
com a boca vazia.
Do nada ela destila 
a azia e o vinagre 
e mais estratagemas 
privativos dos sabres.
E como faca que é, 
fervorosa e energética, 
sem ajuda dispara 
sua máquina perversa:
a lâmina despida 
que cresce ao se gastar, 
que menos dorme 
quanto menos sono há,
cujo muito cortar 
lhe aumenta mais o corte 
e se vive a se parir 
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa faca 
se mede pelo avesso: 
seja relógio ou bala, 
ou seja faca mesmo.)


D

Cuidado com o objeto, 
com o objeto cuidado, 
mesmo sendo uma bala 
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes já 
a bala os traz rombudos 
e com facilidade 
se em botam mais no músculo.
Mais cuidado porém 
quando for um relógio 
com o seu coração 
aceso e espasmódico.
É preciso cuidado 
por que não se acompasse 
o pulso do relógio 
com o pulso do sangue,
e seu cobre tão nítido 
não confunda a passada 
co o sangue que bate 
já sem morder mais nada.
Então se for faca, 
maior seja o cuidado: 
a bainha do corpo 
pode absorver o aço.
Também seu corte às vezes 
tende a tornar-se rouco 
e há casos em que ferros 
degeneram em couro.
O importante é que a faca 
o seu ardor não perca 
e tampouco a corrompa 
o cabo de madeira. 



E

Pois essa faca às vezes 
por si mesma se apaga. 
É a isso que se chama 
Maré baixa da faca.
Talvez que não se apague 
e somente adormeça. 
Se a imagem é relógio, 
a sua abelha cessa.
Mas quer durma ou se apague: 
ao calar tal motor, 
a alma inteira se torna 
de um alcalino teor
bem semelhante à neutra 
substância, quase feltro, 
que é a das almas que não 
têm facas-esquleto.
E a espada dessa lâmina, 
sua chama antes acesa, 
e o relógio nervoso 
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo 
de lâmina que cega: 
faz-se faca, relógio 
ou bala de madeira,
bala de couro ou pano, 
ou relógio de breu, 
faz-se faca sem vértebras, 
faca de argila ou mel.
(Porém quando a maré 
já nem se espera mais, 
eis que a faca ressurge 
com todos seus cristais.)


F

Forçoso é conservar 
a faca bem oculta 
pois na umidade pouco 
seu relâmpago dura
(na umidade que criam 
salivas de conversas, 
tanto mais pegajosas 
quanto mais confidências).
Forçoso é esse cuidado 
mesmo se não é faca 
a brasa que te habita 
e sim relógio ou bala.
Não suportam também 
todas as atmosferas: 
sua carne selvagem 
quer câmaras severas.
Mas se deves sacá-los 
para melhor sofrê-los, 
que seja algum páramo 
ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar 
que pássaros habitem. 
Deve ser a um ar duro, 
sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja à noite, 
que estas têm as mãos férteis, 
Aos ácidos do sol 
seja, ao sol do Nordeste,
à febre desse sol 
que faz de arame as ervas, 
que faz de esponja o vento 
e faz de sede a terra. 


G

Quer seja aquela bala 
ou outra qualquer imagem, 
seja esmo um relógio 
a ferida que guarde,
ou ainda uma faca 
que só tivesse lâmina, 
de todas as imagens 
a mais voraz e gráfica,
ninguém do próprio corpo 
poderá retirá-la, 
não importa se é bala 
nem se é relógio ou faca,
nem importa qual seja 
a raça dessa lâmina: 
faca mansa de mesa, 
feroz pernambucana.
E se não a retira 
quem sofre sua rapina, 
menos pode arrancá-la 
nenhuma mão vizinha.
Não pode contra ela 
a inteira medicina 
de facas numerais 
e aritméticas pinças.
Nem ainda a polícia 
com seus cirurgiões 
e até nem mesmo o tempo 
como os seus algodões.
E nem a mão de quem 
sem o saber plantou 
bala, relógio ou faca, 
imagens de furor.



H

Essa bala que um homem 
leva às vezes na carne 
faz menos rarefeito 
todo aquele que a guarde
O que um relógio implica 
por indócil e inseto, 
encerrado no corpo 
faz este mais desperto.
E se é faca a metáfora 
do que leva no músculo, 
facas dentro de um homem 
dão-lhe maior impulso.
O fio de uma faca 
mordendo o corpo humano, 
de outro corpo ou punhal 
tal corpo vai armando,
pois lhe mantendo vivas 
todas as molas da alma 
dá-lhes ímpeto de lâmina 
e cio de arma branca,
além de ter o corpo 
que a guarda crispado, 
insolúvel no sono 
e em tudo quanto é vago,
como naquela história 
por alguém referida 
de um homem que se fez 
memória tão ativa
que pôde conservar 
treze anos na palma 
o peso de uma mão, 
feminina, apertada.



I


Quando aquele que os sofre 
trabalha com palavras, 
são úteis o relógio, 
a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral 
lidam nessa oficina 
têm no almoxarifado 
só palavras extintas:
umas que se asfixiam 
por debaixo do pó 
outras despercebidas 
em meio a grandes nós;
palavras que perderam 
no uso todo o metal 
e a areia que detém 
a atenção que lê mal.
Pois somente essa fraca 
dará a tal operário 
olhos mais frescos para 
o seu vocabulário
e somente essa faca 
e o exemplo de seu dente 
lhe ensinará a obter 
de um material doente
o que em todas as facas 
é a melhor qualidade: 
a agudeza feroz , 
certa eletricidade,
mais a violência limpa 
que elas têm, tão exatas, 
o gosto do deserto, 
o estilo das facas.


***

Essa lâmina adversa, 
como o relógio ou a bala, 
se torna mais alerta 
todo aquele que a guarda,
sabe acordar também 
os objetos em torno 
e até os próprios líquidos 
podem adquirir ossos.
E tudo o que era vago, 
toda frouxa matéria 
para quem sofre a faca 
ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha 
a vida mais intensa, 
com nitidez de agulha 
e presença de vespa.
Em cada coisa o lado 
que corta se revela, 
e elas que pareciam 
redondas como a cera
despem-se agora do 
caloso da rotina, 
pondo-se a funcionar 
com todas suas quinas
Pois entre tantas coisas 
que também já não dormem, 
o homem a quem a faca 
corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lâmina 
e seu jato tão frio, 
passa, lúcido e insone, 
vai fio contra fios.
De volta dessa faca, 
amiga ou inimiga, 
que mais condensa o homem 
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca 
de porte tão secreto 
que deve ser levada 
como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais 
me detive, a da lâmina, 
porque é de todas elas 
certamente a mais ávida;
pois de volta da faca 
se sobe a outra imagem, 
àquela de um relógio 
picando sob a carne,
e dela àquela outra, 
a primeira, a da bala, 
que tem o dente grosso 
porém forte a dentada
e daí à lembrança 
que vestiu tais imagens 
e é muito mais intensa 
do que pode a linguagem,
afinal à presença 
da realidade, prima, 
que gerou a lembrança 
e ainda a gera, ainda,
por fim à realidade, 
prima e tão violenta 
que ao tentar apreendê-la 
toda imagem rebenta.




João Cabral de Melo Neto

.

Tira-gosto