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TRADUTOR

Thursday, May 17, 2018

O DESCONVIDADO DE PEDRA



Don Juan:
Aparta, piedra fingida!
Suelta, suéltame esa mano,
Que aún queda el último grano
Em el reloj de mi vida.

(José Zorrilla y Moral - Don Juan Tenório)



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silêncio!
é o silêncio que aqui fala
sua palavra de pedra dura

silêncio falado
para calar no fundo
bem além de onde sonha
nossa vã agrimensura

silêncio, gema preciosa da amargura

silêncio amargo em sua própria estrutura
calçado no âmago de sua própria ideia
calcado no íntimo de humana figura

silêncio cuja massa pesa
pendente nessa linha obscura
entre o verbo existir
& a inexistência da carnadura

mas
a este jardim versificado
eu, o silêncio, não fui convidado

coração de pedra
tanto bate até que fura



MC - Don Juan & o Jardim das Maravilhas - 2013
Arte: Imagens do Google





Monday, April 16, 2018

A EDUCAÇÃO PELA CHUVA





para aprender com a chuva
em sua didática translúcida
de agulhas
é preciso fixar os olhos
transfixar as alturas

chuva ensina
liquidez vertical em si
ilogismos em sol
iluminuras

iluminura-se
(lições de chuva)
convectiva
ácida
orográfica
pura

habilita à rigidez dos telhados
antologias de sedução
umidade
energia
estratégia
textura
estratagemas de nuvens
enciclopédicas loucuras
&
segredos
de oxidação
sabe a chuva
hidrostática
canivetes
limpidez & fundura

de saber-se rala
sabe também
o fazer-se impura
queda & ascensão
hastes & pétalas
moedas
lixiviação

sabe a chuva
malícia & espelhos d´água
sabe furacão

tem a faculdade inacessível do dilúvio
& a universidade aberta da paixão
leciona pluviometria
oxigênio
delícias
hidrogênio
lasciva precipitação

para aprender com a chuva
em sua constante mutação
é preciso conhecer
seu estar para acupuntura
sua transparente aventura
& deixar-se levar
(sem amargura)
pelos vendavais do coração





Marcello Chalvinski (Temporal - 2005)



Foto: Images do Google

Tuesday, April 10, 2018

HEBDÔMADA VERTICAL





estou com você caindo do céu 
entre lagartos & gritos 


para que não fiques aflita 
ordeno a ditongos & canivetes 
que preparem ramalhetes 
de proparoxítonas 


duendes & magos 
na ortodoxa ortoépia dos mitos 
ao meu sinal ábdito 
recitam versos-delitos 


estou com você caindo do céu 
entre lagartos & gritos 


o escuro assombroso 
da nuvem abaixo 
cobre a fantasmagórica 
luz da cidade nobre 


as casas pobres dos operários
tombam sobre os jardins ósseos 
na escuridão triste 
das lâmpadas despedaçadas 


mas 

cala tua mágoa 
a enxurrada posta de pé pelo vento 
reduz a distância até os girassóis 

vamos velozes por entre os raios 
que se engastam 
à trombeta dos trovões 


lá embaixo 
há suaves flores tóxicas 
há macios espelhos d´água 
há telefones & capim-limão 


somos o que vai entre a chuva 
perfurando a ventania 
em bilhões de orifícios diagonais 


atravessaremos juntos
as vidraças do temporal 
& solveremos o asfalto das recorrências 

infiltrando múltiplas 
& sutis incoerências 


penetraremos os esgotos 
& rasgaremos ávidos 
os frios lençóis freáticos 


desaguaremos no oceano 
meu amor enigmático 
& voltaremos como milhões 
para este ar de terror & maravilhas 


estou com você caindo do céu 
entre lagartos & gritos










Marcello Chalvinski - Temporal - Brancaleone Ed. 2005

Monday, April 02, 2018

EU QUE SOU FEIO, SÓLIDO, LEAL







A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.
«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
...
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
«Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!»
De repente, parastes embaraçada
Ao pé de um numeroso ajuntamento,
E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


Poema: Cesário Verde
Arte: Tom Colbie

Tuesday, March 20, 2018

ARMADILHAS







Meu anzol canhoto
Meu taco mestiço
Meu laço de prata
Meu fogo a queimar
Meu fojo profundo
Meu feitiço

Minha verve
Todo meu mundo
Minha arapuca
Meu landruá

Minha rede de arrasto
Meu visgo
Minha tarrafa de asa
Umas garrafas de cabernet
Um blues, meia luz
Meus ardis
Meu alça-pé, meu alçapão


O meu jequiá
A minha armação
Meu isqueiro de aço
Minha emboscada
Uma verdade rasgada
Tudo que tinha
Sem faltar nada

Infinitas maravilhas
Todas as armadilhas
Só pra pegar teu coração.





Poema: Marcello Chalvinski
Arte: Tom Colbie

Tira-gosto