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TRADUTOR

Monday, May 29, 2017

A NOITE NUNCA ESQUECE








No meio de uma noite que ardia,
teu olhar encontrou o meu
& todo o som que então havia
naquele exato momento desapareceu.
Em torno de nós, a Terra ficou vazia
O próprio relógio do tempo  parou
mas ainda era só o começo do show.

Só depois, quando você me beijou,
foi que o mundo novamente girou.
Mas, então eu queria que ele parasse.
Desejava que a noite nunca acabasse.
Afinal, por que precisava ser assim,
tudo que é bom tem que ter um fim?

Quando você me deixou na manhã fria,
desci do teu carro, acendi meu cigarro
& sorri, pensando, enquanto você partia:
amanhã certamente vai haver outro dia.

Hoje, no calor deste luar que anestesia
sei que a noite à paixão jamais esquece
& em meu coração também não te esqueço.
Foi uma noite linda & única, ao que parece.
Mas, por mim, poderia ser só um bom começo.







POEMA: MARCELLO CHALVINSKI
ARTE: TOM COLBIE

Wednesday, May 17, 2017

O VAGALUME





Eu fiz um pacto com a prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias. Recordo-me da noite que precedeu essa perigosa ligação. Vi um túmulo à minha frente. Ouvi um vagalume, do tamanho de uma casa, que dizia: “Vou iluminar-te. Lê a inscrição. Não é de mim que parte essa ordem suprema.” Uma imensa luz cor de sangue, diante da qual meus maxilares bateram e meus braços caíram inertes, espalhou-se pelos ares até o horizonte. Apoiei-me a um muro em ruínas, pois estava quase caindo, e li: “Aqui jaz um adolescente que morreu tuberculoso: sabeis o motivo. Não oreis por ele.” Talvez muitos homens não tenham sido tão corajosos como eu. Enquanto isso, uma linda mulher nua veio deitar-se a meus pés. Eu, para ela, com uma expressão triste: “Podes levantar-te”. Estendi-lhe a mão com a qual a fratricida estrangulou a irmã. O vagalume, para mim: “Tu, pega uma pedra e mata-a.” “Por quê?”, disse-lhe eu. Ele, para mim: “Cuidado comigo, tu, o mais fraco, pois eu sou o mais forte. Esta ai chama-se a Prostituição.” Com lágrimas nos olhos, ódio no coração, senti nascer em mim uma força desconhecida. Peguei uma enorme pedra; com muito esforço, levantei-a até a altura do meu peito; com os braços, coloquei-a nos ombros. Escalei uma montanha até seu pico; dali, esmaguei o vagalume.




Excerto de "Cantos de Maldoror" - Conde de Lautreamont
Arte: Tom Colbie

Friday, May 12, 2017

VOCÊ QUE AGORA PASSEIA NA MINHA CABEÇA







Você,
que agora passeia
na minha cabeça
com seu corpo suave,
não esqueça que deixou
no meu peito uma ausência
& que essa ausência
se chama saudade.

Você,
que hoje mora
na minha vontade,
como na memória,
uma música que encanta,
não esqueça que agora,
na minha lembrança, seu beijo
é um desejo que dança.

Você,
que habita
& se faz senhora
do meu pensamento
como quem namora,
a cada momento,
a toda hora,
o próprio tempo,
por favor não esqueça:
meu coração está em festa.

& eu te quero. Apareça.



POEMA: MARCELLO CHALVINSKI
ARTE: TOM COLBIE

Monday, May 08, 2017

CÂNTICO NEGRO










"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!






Poema: José Régio


Arte: Tom Colbie



Tira-gosto