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TRADUTOR

Thursday, June 22, 2017

OS TRÊS MAL AMADOS



Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.



POEMA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO
ARTE: TOM COLBIE

Wednesday, June 21, 2017

ROSA GALEGA







só uma rosa há
estilizada & tua
com o perfume
que exalas nua

princesa grega
delgada & leve
Rosa Galega
branca de neve
tua flor-poema
paixão se escreve

há em torno de ti
um calor que flutua
feito canção
& nem mesmo
a mais bela lua
abala tanto
meu coração


Sunday, June 18, 2017

ORIGINAL É O POETA








Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho ás palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo.



Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte faz
devorar um jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.



Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce á rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.



Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.







POEMA:
ARY DOS SANTOS
ARTE
TOM COLBIE

Tuesday, June 13, 2017

O HOMEM COM BELOS OLHOS

  


Quando éramos crianças
havia uma casa estranha,
as cortinas estavam
sempre
fechadas,
nós nunca ouvíamos uma voz
dentro dela.
O jardim se arrepiava todo
em bambus altos,
nós gostávamos de brincar
no bambuzal.
Fingir ser
Tarzan
(embora não tivéssemos
Jane).
E havia um
tanque de peixes,
um dos grandes,
cheio dos
mais gordos peixes dourados
que você já viu.
Eles eram
mansinhos,
vinham para a
superfície da água
e comiam farelo de
pão
em nossas mãos.

Nossos pais disseram:
“Nunca cheguem perto daquela
casa”.
Portanto, é óbvio,
nós fomos para a casa.
A gente se perguntava
se alguém vivia ali.
Semanas se passaram e
nunca vimos
ninguém.
Então um dia
ouvimos
uma voz.
Vinha da casa:
“SUA PUTA
DESGRAÇADA!”
Era a voz de um
homem.
Em seguida
a porta de tela
da casa
foi aberta
num só puxão,
e o homem
caminhou
para fora.
Ele carregava uma
garrafa de uísque
em sua
mão direita.
Tinha uns
30 anos.
Um cigarro
em sua
boca.
Precisava se barbear.
Seu cabelo era
selvagem e
despenteado.
Pés
Descalços.
Camiseta simples
e calças.
Mas seus olhos
eram
brilhantes.
Eles ardiam
de tanto brilho.
E ele disse:
“Hey, pequenos
cavalheiros,
tendo bons
momentos, eu
espero.”
Então ele deu um
curto riso
e andou
de volta para dentro
daquela casa.
Nós saímos, voltamos
para o jardim dos meus pais,
e pensamos
sobre o ocorrido.
Nossos pais,
decidimos,
queriam nos
manter afastados
daquela casa
porque eles
não queriam que nós
víssemos um homem
como
aquele.
Um forte e natural
homem
com
belos
olhos.
Nossos pais
tinham vergonha
por
não ser
como aquele
homem,
eis por que eles
queriam
nos manter
afastados.
Mas
nós voltamos
para aquela casa
para o bambuzal
para os mansinhos
peixes-dourados.
Nós voltamos
muitas vezes
durante muitas semanas,
mas nós
não vimos
ou ouvimos
o homem
outra vez.
As cortinas estavam
fechadas
como sempre,
e somente se ouvia
o silêncio.
Então um dia
quando voltamos da
escola,
nós vimos
a casa.
Ela havia sido toda
queimada,
nada tinha restado
intacto.
Eram apenas cinzas e a fumegante,
retorcida e negra
fundação.
E nós fomos para
o tanque de peixes.
Dentro dele
não restava água,
e os gordos
peixes alaranjados
estavam mortos
ali,
secando.







Nós voltamos para
o jardim dos meus pais
e conversamos sobre
o ocorrido.
E decidimos que
nossos pais
queimaram aquela casa,
mataram
quem nela morava,
mataram
os peixes dourados,
porque era
tudo muito
belo,
mesmo o bambuzal
havia sido
queimado.
Eles temiam
o homem
com os belos
olhos.
E
nós tememos
desde então
que
ao longo de nossas vidas
coisas como aquela
acontecessem,
e ninguém
quisesse que
alguém
fosse
forte
e belo
daquele jeito.
Tememos que
os outros nunca
permitissem.
E que
muitas pessoas
teriam de
morrer.



Poema: CHARLES BUKOWSKI

Arte: TOM COLBIE

Tira-gosto