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TRADUTOR

Thursday, November 24, 2011

Primeira Canção Torrencial





chove sobre a terra crua
esta chuva bruta
de aspereza nua
chove entortando lírios
chove coalhando telhados
chove enferrujando trilhos

vê:

chove sobre o riso
esta chuva impura
chove sobre o pranto
(outra chuva dura)
chove a todo instante
essa que é vil & perfurante

chove nos faróis congelados
chove nos corações atropelados
chove no asfalto escaldante

chove sobre os carros
chove sobre a face
chove sobre o barro
chove sobre a grama
(como se não bastasse)
essa que desama
essa que chove
a fazer lama

chove nos alagados
chove torturante
chove pelos prados
chuva espessa
que espeta hastes
por todos os lados

chove desmantelo
chove transparente
chove lancinante

chove

chuva caudalosa & larval
chove vida
chove carnaval

ou
apenas chove
sem
bem
nem
mal

em si
a chuva
chove

em si
a chuva
se basta









Poema: Marcello Chalvinski,
Arte: Tom Colbie

Friday, November 18, 2011

ACASO









No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.






Álvaro de Campos (FP)

Wednesday, November 16, 2011

ALGUM LUGAR EM QUE EU NUNCA ESTIVE





algum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas




E.E. Cummings
[Trad: Augusto de Campos]

Wednesday, November 09, 2011

DESTINO DO POETA







Palavras? Sim. De ar
e perdidas no ar.
Deixa que eu me perca entre palavras,
deixa que eu seja o ar entre esses lábios,
um sopro erramundo sem contornos,
breve aroma que no ar se desvanece.
Também a luz em si mesma se perde.








Octávio Paz
[Trad. H. de Campos]

Monday, November 07, 2011

DIVERBIUM



filamentos lunares
perfuram nuvens
carregadas de hipertextos

ora direis
ouvir estrelas

os casarões da ilha
resistem à gargalhada
atroz dos arranha-céus

salta clown!

o aguaceiro ainda lambe
as pedras de cantaria

&
do alto do parnaso
cérbero espia

vê como é fria
a carne descontextualizada
fina flor dessa agonia

boa noite sol
até um dia
quando eu acabar
com aquela garrafa vadia

(tubulações aéreas
vazam fluido anti-solar)

no ar
o sorriso misericordioso de irene
pende spleen & ideal
fusão sinóptica de idéias
em desnexo visual

antroponáutica
antropofagia
antro pária
vê:
é só demiurgia
eletricidade paliativa
para a fadiga
da orgia

ora direis
ouvir estrelas

o azar é um dançarino

desvirgem
despalavra
desverbo
desfrase
desverso
desrima
a virgem
que encontrei

é crua a vida
alça de tripa & metal

atenta:
loucos são todos em suma

prostitutas de maldoror
ainda uma vez
adeus!

prostitutas de macondo
só vou por onde
me levam meus próprios passos!

prostitutas de pasárgada
ora direis
ouvir estrelas...

toma um fósforo
& acende o teu cigarro

vêm aí
os vagalumes idiotas
os alcalóides à vontade
& as chuvas de quatro anos

ai de ti copacabana
pátria amada
salve
salve-se

se eu fizer poesia
com a tua miséria
sorte no jogo
azar no amor





POEMA: MARCELLO CHALVINSKI
ARTE: TOM COLBIE

SOB O SIGNO DE AURÉLIO







“Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...”


João da Cruz e Sousa







O bairro onde Aurélio Francisco morava era de lascar. Havia de tudo entre o armazém bananeiro e os cabarés: tráfico, jogatina, terreiros de umbanda, igrejas evangélicas e Deus sabe mais o quê. Não bastasse lixo e esgoto a céu aberto, novas e enormes crateras se formavam a cada dia, estrangulando o tráfego e aumentando o caos na altura da Rua dos Turcos. Reclamar ninguém podia. Eram tempos de ditadura.
Homem simples, Aurélio ganhava a vida como eletricista de uma companhia privada e somava ao salário os rendimentos da sorveteria Azul Anil – um pequeno negócio que mantinha na parte da frente da casa, com a ajuda da mulher, Catarina. Moça meiga e muito bela, “Catinha” preparava os sorvetes, atendia com presteza os poucos fregueses e ainda dava conta dos trabalhos domésticos. Parecia viver a lírica alienação da vida na periferia, com suas rotinas inquebrantáveis e a inexorável companhia das músicas sertanejas.
Aurélio definia-se como homem reto. “Di casa pru selviçu, do selviçu pra casa”, gostava de dizer com seu jeito capiau. Pouco dado a farras e à companhia de amigos, não saía nem mesmo nos fins de semana. Quando muito, convidava uns parentes pra comer um bode ou mesmo um pato, sob as árvores do seu imenso terreno. Era colocar as caixas acúisticas na varanda e pronto. A casa era seu maior orgulho – herança do pai, o velho Aurélio Chicó. O grande prazer de Aurélio era gabar-se da imponência de sua morada, ainda que invariavelmente acabasse por se aborrecer com os comentários de Catinha,sobre a péssima conservação do imóvel.
O casal respirava uma atmosfera de razoável harmonia, mas o fato de não terem filhos causava incômodo ao sacerdote e dava assunto para os vizinhos mais afeitos a comentar experiências alheias. Todavia, Aurélio e Catinha não se perturbavam. Quando o assunto lhes chegava aos ouvidos, ela erguia as mãos para o céu e dizia que tudo dependia da vontade de Deus, renegando veementemente o fato de que fazia uso de contraceptivos. Aurélio, por seu turno, gostava de dizer: “O negócio é ardquiri patrimonho. Dispois a gente vê...” e logo mudava de assunto.
Numa segunda-feira cinzenta, porém, Aurélio pôs-se de pé mais cedo que o costume. Ligou a vitrola e, pela primeira vez na vida, sentiu o real desejo de ser pai. Indiferente à umidade e aos insetos, passeou lentamente sob a copa das árvores embalado por ensurdesedores decibéis de música brega. Parou subitamente ao fitar um rasgo de céu e, movido do que seria uma profética visão, idealizou o herdeiro: “Sementi forti. Um varão di dá inveja. Homi séro, corajoso, galanti e dominadô. Fio legítimo di gente lutadora e di respeito. Vai ser um cabra vencedô”.
Aurélio estava de fato decidido a engravidar a mulher. Fazendo pequenas contas de cabeça, planejou economizar o necessário para a chegada do primogênito. Já pensava até onde matricularia o menino, quando Catinha – surpresa ao vê-lo divagando àquela hora –, tratou de chamá-lo para o café. Atendendo a seus apelos saturados de meiguice, Aurélio não se fez de rogado. Nutriu-se de café e beiju e partiu para a labuta. Cruzou com prostitutas que voltavam ao cabaré arrastando sandálias ordinárias desafiveladas, esbarrou nos homens suados do armazém bananeiro e seguiu para o ponto do ônibus, sem parar de pensar na melhor forma de contar a “sua decisão” para Catinha.
Após toda a manhã de um trabalho cansativo e irritante, Aurélio sentou-se com outros operários de marmitas à mão. Nem bem iniciou o almoço e o encarregado lhe comunicou que deveria comparecer ao departamento de pessoal. Estava demitido. Colérico, não terminou a refeição, nem quis se despedir dos colegas. Comprimiu-se no velho ônibus sucateado, perfeitamente resolvido a “tomá uns trago pra isfriá a muleira”.
No botequim do “Seu Irmão”, perguntado sobre o que fazia àquela hora “zangado e ainda por cima bebendo”, Aurélio acabou contando seu drama de desempregado. Bartô – o velho carroceiro que o inquirira –, bateu o copo no balcão e comentou com todas as farpas da ironia: “É, meu cumpadi. O negócio não tá bom pro teu lado não. Mais essa agora, hein? Se eu fosse ocê, abria dos óio e mandava batê um belo dum tambô, que é pra quebrá as urucubaca, tá me ouvindo? ”
Aurélio fez pouco caso da conversa puxada por Bartô, mas decidiu que era hora de ir para casa. Pagou a conta e saiu apressado, com a boca recendendo a cachaça e a cabeça a esquentar-lhe as preocupações. A recessão que convulsionava o país arrastava famílias inteiras à miséria. Vitimado pelo desemprego em época tão hostil, via que o sonho do herdeiro iria escorrer como água entre seus dedos. Eram quase três da tarde e o mesmo calor que afastava as pessoas da rua ajudava a compor a inquietude que lhe torturava. Trocou passos aflitos, esbarrou nos homens suados do armazém bananeiro e passou pelos cabarés adormecidos. Teve um sobressalto ao se deparar com uns garotos que saíam correndo de sua casa, mas julgou que houvessem invadido à cata de mangas e relaxou.
Achou estranho o fato da sorveteria ainda estar fechada. Atravessou o jardim e seguiu apreensivo quintal adentro imaginando encontrar a mulher em alguma tarefa inesperada e urgente. Afinal, não havia desculpas para tamanho descuido. Driblando os pilares da caixa d’água ao som de uma melodramática música brega, Aurélio rumou para a lavanderia, que ficava ao fundo. Apesar do alto volume da música, pode distinguir uns gemidos abafados e o medo de que algo terrível estivesse acontecendo amargou-lhe a boca.
Esgueirou-se pelo poço observando atentamente. Súbito, o espanto branqueou-lhe a face. Por entre a folhagem, viu o rosto crispado da mulher, com a boca tapada por uma peça de roupa e fortemente comprimido sobre o tanque. Correu até ela aflito e tomou um susto ainda maior ao perceber o que de fato acontecia. Sua amada Catinha, a mulher que lhe daria o filho de seus sonhos, estava sendo violentamente sodomizada pelo quitandeiro Zé Dionísio. Possesso, Aurélio olhou para os lados e, encontrando uma estaca, partiu para cima de Zé Dionísio gritando alucinado.
– Feladaapuuuta!
Zé Dionísio, crioulo forte e sestroso, soube livrar-se dos ataques de Aurélio e na primeira oportunidade sacou do revólver e atirou sem hesitar. Catinha, destapando a boca, atirou-se em desespero sobre o peito ensangüentado do marido. Aurélio estava tomado de silêncio. Não sentia dor alguma. Não ouvia nem música, nem som algum. A histeria da mulher que se descabelava sobre seu peito não lhe inspirava qualquer sentimento. Tudo que havia para ele era a dança muda que o sol ensaiava nas folhas da mangueira. Depois veio o frio e, ao fim, a escuridão.
A vizinhança adentrou a casa tão rapidamente após os disparos, que boa parte dos intrometidos ainda assistiu a fuga de Zé Dionísio. Após um momento de estupefação, Dona Otília vestiu a mulher e o turco Farad tratou de levar o ferido para o pronto-socorro.
Muitos dias depois, sem que Catinha deixasse a casa para saber do marido ou para o que quer que fosse, Aurélio surgiu. Ombro enfaixado, braço na tipóia e entupido de remédios, retornava à casa envolto em silêncio. Apesar da gravidade do ferimento, havia se recuperado de forma excepcional. Trocou passos envergonhados, cuidou de não esbarrar nos homens do armazém bananeiro, cruzou com prostitutas que voltavam ao cabaré arrastando sandálias ordinárias desafiveladas e seguiu de olhos baixos sob os olhares maliciosos dos vizinhos. Logo que entrou em casa tratou de insultar a mulher. Vendo que ela não dizia palavra, irou-se ainda mais. Pegou o grosso cinturão de couro que usava no trabalho e bateu até vê-la coberta de hematomas. Chorando copiosamente, Catinha implorou para que ele ouvisse as suas palavras. Suado, ofegante e com o braço extenuado de tanto bater, Aurélio sentou-se para ouvi-la.
– Olha, eu sei que num é fácil pra ocê, mas ocê tem que deixar eu falar. Se eu num falar vai ser bem pior e dispois...
– Fala logo, qui já ta mi esquentando a muleira...
– Ta bom. Olha, olha... ocê sabe... eu tenho aquela minha irmã doente e... bom... ela tá pra morrer e os médico mandaram ela pra casa... ela num tem mais muito tempo e então eu queria que ao menos uma vez na vida ela tivesse um pouco de vida boa, de poder comer coisa boa e...
– Desembucha logo. Onde é que tu qué chegá?
– Calma, calma. Olha... eu comprei muita coisa pra minha irmã. Muita coisa mesmo, que eu mandei pra ela e...
– Fala logo disgranhenta!
– É que eu comprei tudo fiado no Zé Dionísio e num pude pagá. Se eu num desse pra ele, ele ia te conta tudo aí...
– Disgramada dos inferno, tu tem o quê nessa cabeça de merda? Puta de merda, égua filha-duma-puta, porra dum cacete...
Aurélio esbravejou, humilhou e agrediu a mulher por cerca de meia hora. Depois, ameaçando-a com uma faca, fez com que ela se despisse e expulsou-a de casa. Catinha correu para fora dos limites do bairro, histérica e nua, desaparecendo sem deixar qualquer indicação de seu destino. Para a vizinhança foi o prato do dia. As comadres lideradas por Dona Otília juntaram-se sob a sombra de uma mangueira e se persignaram repetidas vezes, entre comentários temperados de ácida hipocrisia. Alguns dos homens do lugar se aproximaram do conturbado Aurélio, quase na mesma hora. O velho João da Lapa foi quem falou, cumprimentando-o com a língua pesada e o hálito saturado de cáries:
– É isso aí Auréi. A rente tá do teu lado. Ocê fez o que quarqué um faria. Tomou uma atitude de macho. Se tu num faz isso, aí é que era pra ti... Corno consciente é o pior que tem. Tu pelo meno serrou o teu...
As palavras de João da Lapa assombraram a mente de Aurélio durante os três meses em que se manteve isolado no interior de sua velha casa. Só se sabia que ele estava vivo, por conta de sua inquebrantável rotina de ouvir músicas sertanejas. Quando as chuvas começaram, o deslustrado Aurélio recebeu a visita de alguns parentes. Queriam que ele reativasse a sorveteria, que voltasse a trabalhar, essas coisas. Tudo em vão. Afundado em sua insuportável vergonha, Aurélio gastava os dias a beber e lastimar sua desgraçada “sorte de corno”.
Já pelo fim do período chuvoso, invadiu o bairro uma incontrolável nuvem de moscas. A praga foi tão grande que as igrejas e os terreiros não puderam realizar cultos por quatro dias. Os barbeiros eram obrigados a revisar várias vezes as barbas dos fregueses, pois mal tiravam a navalha, as moscas assentavam com velocidade vertiginosa. Os animais, em especial os cães e burros, pareciam negros devido ao moscaréu que os cobria. Comer sem engolir alguns insetos era tarefa impossível e a irritação tomava conta das pessoas. Por conta disso, pensou-se em pedir auxílio ao governo. Mas o simples fato de promover uma reunião poderia ser considerado conspiração e a hipótese de solicitar ajuda foi logo descartada. Muitas armadilhas foram desenvolvidas e muitos venenos foram aplicados sem que se notasse êxito. As pessoas já se viam obrigadas a adaptar-se à situação, quando os coaxos dos sapos sobrevieram e as coisas deram sinais de melhora.
O antigo comércio de Zé Dionísio reabriu, transformado em bar. Era lá, ironicamente, que Aurélio gastava agora a maior parte do tempo. Em geral, era atendido por Fábio – um garoto muito risonho que parecia se compadecer de seu alcoolismo decadente e tentava a todo custo animá-lo a mudar de vida. Pouca gente freqüentava o lugar, mas mesmo assim a música era de ensurdecer, dia e noite. O canto esquerdo do balcão, junto a uma pilha de armadilhas pega-mosca, era o sítio favorito de Aurélio. Sorvendo aguardente por entre os espaços dos dentes sujos, ele remoía a traição da esposa buscando justificativas que pudessem dar paz à sua alma. Bastava embriagar-se para cair em pranto. Contudo, pior era seu sofrimento aos fins de tarde, quando Boca de Cabelo, o dono do bar, chegava. Era um tipo grandalhão, dono de espessa barba negra e que, em seu cinismo manifesto, regozijava-se em despejar sobre ele toda sorte de zombarias e provocações. Aurélio nunca reagia, por mais que lhe doesse a agressão. Para ele, era como estar cumprindo um castigo merecido e, afinal, encarar Boca de Cabelo não era mesmo tarefa fácil.
Atravessando um meio-dia ardente, no mês em que os capirotos aproveitam o asfalto para fritar serpentes, Aurélio chegou até o bar. Tinha vendido um congelador e estava decidido a tomar umas cervejas para variar. Da porta, porém, estancou e assistiu à humilhante demissão de Fábio, protagonizada pelo truculento Boca de Cabelo. Sabia que Fábio não tinha parentes que pudessem ajudá-lo, nem lugar para onde pudesse ir. Consternado, atravessou a rua e aguardou a saída do rapaz sob a sombra de um poste. Assim que o viu tratou de convidá-lo a pernoitar em sua casa. O garoto aceitou sem hesitar e os dois seguiram atravessando as pinguelas da Rua da Vala. Num lampejo súbito, Aurélio animou-se. Queria reabrir a sorveteria e recomeçar a vida, contando com a ajuda de Fábio. De fato, resolveram consolidar um compromisso de auxílio mútuo e seguiram abraçados pela rua dos Turcos, sonhando dias melhores.
Na porta de entrada da casa, entretanto, estava Catinha. Indizivelmente bela, mantinha-se grudada à grade do portão com os olhos muito abertos e brilhantes. Durante algum tempo permaneceu calada, como se esperasse uma reação de Aurélio. Ele, por seu turno, trocou um olhar de grave cumplicidade com Fábio e tentou passar ao largo da ex-mulher. Inútil. Catinha atirou-se sobre ele, chorando copiosamente o seu amargo arrependimento. Dizendo-se preocupado com novos vexames, Aurélio pediu ao garoto que o aguardasse no jardim e conduziu a mulher para o interior da casa. Os dois conversaram horas a fio, enquanto Fábio com o apetite que lhe era peculiar comia uma manga após outra. Por fim, Aurélio chamou-o e, agarrado a Catinha, comunicou sua decisão de voltar a viver com ela. O garoto, acreditando que Aurélio declinaria da proposta que lhe havia feito, exalou um ar desconsolado. Aurélio, todavia, fez questão de manter de pé sua palavra e confirmou Fábio como seu fiel ajudante nos negócios da Azul Anil.
A alegria parecia iluminar a velha casa. Aurélio ordenou que Fábio matasse um bode e dois patos e preparou, ele mesmo, a lauta refeição comemorativa. Beberam uma aguardente violácea feita de mandioca, dançaram sobre os ossos descarnados do banquete e sucumbiram ao sono profundo imposto pelos corpos extenuados. A música brega atingia volumes ensurdecedores anunciando que a vida havia recuperado o sentido para eles.
Os comentários escabrosos dos vizinhos retomariam atividade, agora em escala industrial. Só se falava “lunado” e sua “esposa chifreira”. Ninguém podia aceitar que o sujeito reatasse uma relação tão violentamente destruída pelo adultério. “Grande é o castigo do corno!”, dizia Bartô. “Desavergonhada!”, repetia Dona Otília. O sacerdote tentou aquietar as fiéis mais revoltadas e chegou a fazer sermões sobre matrimônio, arrependimento e perdão. Mas isso de pouco resolveu. Consideravam a bela Catinha “mais indigna e repulsiva que as putas do cabaré”.
Sem se ocupar com as maledicências, o casal arregaçou as mangas e retomou o negócio da sorveteria, sempre com a colaboração irrestrita de Fábio. Aurélio tanto fez que arrumou emprego nas centrais elétricas do governo e voltou a sonhar com uma vida tranqüila e segura ao lado da esposa. Estava mais confiante do que nunca. Em pouco tempo, reformou a casa e ampliou a sorveteria, que finalmente passara a dar lucro, graças ao asfaltamento da rua. Os vizinhos, mantidos à necessária distância, não importunavam tanto. Comentários maldosos só chegavam aos ouvidos de Aurélio através de um ou outro bêbado desabusado. Mas ele já não ligava. O sacerdote, que voltou a freqüentar-lhe a casa, falava da necessidade de filhos no casamento e aquelas coisas que sempre falava quando, por instantes, conseguia ficar sem comer ou beber. Certo é que Aurélio voltou a sonhar com o herdeiro fabuloso. Numa quinta à noite, sentindo a vida estabilizada, confidenciou a Catinha o seu renovado desejo. A reação da mulher superou suas expectativas, fazendo com que vivessem momentos de intensa alegria. Antes de adormecer, já na sexta-feira, Aurélio teve a idéia: faria uso das férias que estavam vencendo e proporcionaria uma viagem de lua-de-mel para a esposa, a fim de gerar o filho desejado. Iriam de ônibus para o interior e Fábio ficaria tomando conta de tudo. Era perfeito. Seria uma grande surpresa.
Oito dias depois, muito animado, assinou as férias, passou no banco e voltou pra casa, já com as passagens no bolso. Mal podia esperar para ver a reação da esposa. Esbarrou nos homens suados do armazém bananeiro, cruzou com prostitutas que voltavam ao cabaré arrastando sandálias ordinárias desafiveladas, e atravessou a rua dos Turcos sem tocar os pés no chão. Como a sorveteria estivesse fechada, voou para a cozinha a fim de surpreender a mulher. E surpresa foi o que teve ao encontrar Catinha sorvendo com gemidos de êxtase e boca gulosa as últimas gotas de sêmen do pênis de Fábio. Entorpecido pelo gozo, o garoto não percebeu a aproximação de Aurélio, que com uma cadeira desferiu-lhe violento golpe. Catinha, em seminudez, correu para a rua aos berros de “não me mata, não me mata...”, despertando a atenção das comadres mais e, desta vez, até das menos mexeriqueiras. Aurélio demorou a segui-la e quando o fez, percebeu que não iria alcançá-la. Incrédulo e desesperado, esfregava incessantemente as mãos no rosto sem saber que atitude tomar até que, diante da pequena multidão que se formara, subiu em um poste e tentou agarrar-se aos fios eletrificados. A descarga, porém, atirou-o ao chão. Com os olhos pregados no zênite, Aurélio pode ouvir, segundos antes de desfalecer, a voz de Bartô a repetir: “Grande é o castigo do corno!”.
Meses se passaram até que ele pudesse deixar o hospital. Tetraplégico, foi levado de volta à casa, pela própria Catinha que, sem nenhum rodeio confessou-lhe estar grávida do jovem amante. A raiva que sentiu pela traição era menor que a decepção de não ser ele a gerar o herdeiro. Aprisionado no próprio corpo, Aurélio não conseguia sequer articular palavra. Sua percepção do mundo e sua relação com ele reduziu-se a ver e ouvir. Paralisado, veria Fábio assumir a casa, dominar a mulher e executar transformações no imóvel, que ele jamais aprovaria. O menino, batizado com o nome de Fábio Francisco, ganhou o apelido de Chicó e desde cedo, se envolveu em inúmeras brigas e confusões por conta do aviltante tratamento que recebia dos colegas e vizinhos. Marginalizado e invariavelmente espancado pelo pai biológico, não tardou a delinqüir e a freqüentar institutos correcionais. O primeiro deles, logo após o golpe, quando foi formado um Comitê de Governo, responsável por conduzir a chamada contra-revolução. Na prática, era o esforço para reestruturar as antigas bases sócio-econômicas, garantindo os privilégios da burguesia, dos latifundiários e principalmente do capital internacional. Epidemias, fome e perseguição política marcariam o período. Por volta dos 20 anos, mais ou menos quando o Comitê criou o D.A.P.U. – polícia política responsável pela repressão ao inimigos do Regime –, Chicó juntou os pertences numa trouxa e fugiu com um circo de lona velha. Vitimado pela dengue, com o corpo em febre e a alma enregelada, deixava para trás a desleixada mãe que, em companhia de Fábio, manteria vivo o fantasmagórico Aurélio, pelo resto de sua triste vida. Levou consigo uma garrafa de aguardente, um rádio e a inexorável companhia das músicas sertanejas.

Friday, November 04, 2011

A ESFINGE SEM SEGREDO



Oscar Wilde
UMA ÁGUA FORTE
Achava-me numa tarde sentado no terraço do Café Paz, contemplando o fausto e a pobreza da vida parisiense, a meditar, enquanto bebericava o meu vermute, sobre o estranho panorama de orgulho e miséria que desfilava diante de mim, quando ouvi alguém pronunciar o meu nome. Voltei-me e dei com os olhos em Lord Murchison. Não nos tínhamos tornado a ver desde que estivéramos juntos no colégio, havia isto uns dez anos, de modo que me encheu de satisfação aquele encontro e apertamos as mãos cordialmente. Tínhamos sido grandes amigos em Oxford. Gostaria dele imensamente. Era tão bonito, tão comunicativo, tão cavalheiresco. Costumávamos dizer dele que seria o melhor dos sujeitos, se não falasse sempre a verdade, mas acho que, na realidade, o admirávamos mais justamente por causa da sua franqueza. Encontrei-o muito mudado. Parecia inquieto, perturbado e em dúvida a respeito de alguma coisa. Senti que não podia ser o ceticismo moderno, pois Murchison era um dos conservadores mais inabaláveis e acreditava no Pentateuco com a mesma firmeza com que acreditava na Câmara dos Pares. De modo que conclui que havia alguma mulher naquilo e perguntei-lhe se ainda não se havia casado.
- Não compreendo as mulheres bastante bem - respondeu.
- Meu caro Geraldo - disse -, as mulheres são feitas para serem amadas e não para serem compreendidas.
- Não posso amar sem ter confiança absoluta - replicou.
- Creio que há um mistério na sua vida, Geraldo - exclamei. - Conte-me isso.
- Vamos dar um passeio de carro - respondeu. - Há gente demais aqui. Esse carro amarelo, não. Um de qualquer outra cor... aquele ali, verde escuro serve.
Dentro de poucos minutos estávamos a descer a trote o bulevar na direção da Madalena.
- Para onde vamos? - perguntei.
- Oh! para onde você quiser! - respondeu. - Para o restaurante do Bosque. Jantaremos ali e contar-me-á tudo a respeito da sua vida.
- Primeiro quero que você me conte a sua. Revele-me o seu mistério.
Tirou do bolso uma pequena carteira de marroquim com fecho de prata e entregou-me. Abri-a. Dentro havia a fotografia de uma mulher. Era alta e esbelta e de aspecto singular com grandes olhos misteriosos e cabelos soltos. Parecia uma clairvoyante (1) e achava-se envolta em ricas peles.
- Qual é a sua opinião a respeito desse rosto - perguntou ele. - Inspira confiança?
Examinei o retrato atentamente. Parecia-me o rosto de alguém que guarda um segredo, mas o que não podia dizer era se o segredo fosse bom ou mau. Aquela beleza parecia feita de muitos mistérios reunidos, uma beleza, de fato, mais psicológica do que plástica, e o ligeiro sorriso que lhe flutuava nos lábios era demasiado sutil para ter realmente encanto.
- Bem - exclamou ele, impaciente - que me diz?
- É a Gioconda em vestes de luto - respondi. - Conte-me tudo quanto a ela se refere.
- Agora não; depois do jantar - disse ele e começou a conversar a respeito de outras coisas.
Quando o empregado trouxe o nosso café e os cigarros, lembrei a Geraldo a sua promessa. Ele levantou-se da sua cadeira, caminhou duas ou três vezes acima e abaixo na sala e, deixando-se cair numa cadeira de braços, contou-me a seguinte história:
- Uma tarde, aí pelas cinco horas, descia eu pela Rua Bond. Havia uma terrível aglomeração de veículos e o tráfego quase parado. Perto do passeio estava parado um carrinho fechado, amarelo, que, por esse ou aquele motivo, atraiu a minha atenção. Ao passar ao seu lado, vi surgir dele, a olhar para fora, o rosto que lhe mostrei ainda há pouco. Fascinou-me imediatamente. Fiquei a noite inteira a pensar nele e o dia seguinte também. Subi e desci várias vezes por entre aquela maldita confusão, lançando um olhar perscrutador para dentro de todo carro, à espera do carro fechado amarelo. Mas não pude descobrir ma belle inconnue (2) e afinal comecei a pensar que ela era apenas um sonho. Cerca de uma semana depois, estava a jantar com Madame de Rastail. O jantar estava marcado para as oito horas, mas às oito e meia ainda nos achávamos à espera na sala de visitas. Por fim o criado abriu a porta e anunciou Lady Alroy. Era a mulher que eu estivera a procurar. Entrou muito devagar, parecendo um raio de lua cercado de renda cinzenta, e, para intenso deleite meu, pediram-me que a conduzisse à sala de jantar. Depois de nos sentarmos, observei-lhe com a maior inocência:
«Creio que já a vi, há algum tempo, na Rua Bond, Lady Alroy».
Ela ficou muito pálida e disse-me, em voz baixa:
«Por favor, não fale tão alto. Podem ouvi-lo».
Senti-me desditosíssimo por ter começado tão mal e mergulhei cegamente numa dissertação sobre peças francesas. Ela falava pouquíssimo, sempre com a mesma voz baixa e musical, parecendo receosa de que alguém a estivesse escutando. Senti-me apaixonadamente, estupidamente enamorado e a indefinível atmosfera de mistério que a cercava excitava, a mais não poder, a minha curiosidade. Quando ela se retirou, logo após o jantar, perguntei-lhe se poderia visitá-la. Hesitou um momento, olhou em redor para ver se alguém estava perto de nós e depois disse:
«Sim; amanhã às quinze para as cinco».
Pedi a Madame de Rastail que me desse informações a respeito dela; mas tudo quanto pude saber é que era uma viúva, morando numa bela casa em Park Lane e, como naquele momento um desses cientistas maçantes começasse uma dissertação a respeito de viúvas, para exemplificar a sobrevivência dos matrimonialmente mais ajustados, despedi-me e fui para casa.
No dia seguinte cheguei pontualmente a Park Lane, no momento exato, mas o mordomo disse-me que Lady Alroy tinha acabado de sair. Dirigi-me ao clube, bastante desiludido e confuso e, depois de muito refletir, escrevi-lhe uma carta, perguntando-lhe se me seria permitido tentar a sorte em alguma outra parte. Por vários dias não recebi resposta, mas afinal chegou-me às mãos um bilhetinho, dizendo-me que estaria ela em casa no domingo, às quatro e com este extraordinário pós-escrito: «Por obséquio não torne a escrever para mim aqui; explicar-lhe-ei, quando o vir». No domingo, recebeu-me e mostrou-se perfeitamente encantadora. Mas quando me despedia, pediu-me que, se alguma vez tivesse ocasião de escrever-lhe de novo, dirigisse a minha carta para «Sra. Knox, aos cuidados da Biblioteca Whittaker, Rua Verde». «Há motivos - disse ela - pelos quais não posso receber cartas em minha própria casa».
Durante toda a temporada via-a amiudadas vezes e a atmosfera de mistério sempre se manteve em torno dela. Às vezes pensava que se achava ela em poder de algum homem, mas parecia tão inabordável que não podia acreditar naquilo. Era realmente difícil para eu chegar a qualquer conclusão, pois ela era como um desses estranhos cristais que a gente vê em museus e que são, num momento, claros, e em outro, turvos. Por fim, decidi-me a pedi-la em casamento. Senti-me doente e cansado daquele incessante segredo que impunha a todas as minhas visitas e às poucas cartas que lhe enviei. Escrevi-lhe para a biblioteca, perguntando-lhe se podia ver-me na segunda-feira seguinte, às seis horas. Respondeu que sim e senti-me transportado ao sétimo céu. Estava apaixonado por ela, a despeito do mistério, pensava então... em consequência dele, vejo agora. Não; era a mulher mesma que eu amava. O mistério perturbava-me, enlouquecia-me. Porque o acaso fez-me descobrir a pista?
- Descobriu-a então? - exclamei.
- Receio que sim - respondeu. - Julgue você por si mesmo. Quando chegou a segunda-feira, fui almoçar com meu tio e cerca das quatro horas encontrava-me em Marylebone Road. Meu tio, como você sabe, mora em Regent's Park. Queria alcançar Piccadilly e, para atalhar, meti-me por uma enfiada de becos miseráveis. De repente avistei à minha frente Lady Alroy, com um espesso véu e caminhando muito apressada. Ao chegar à derradeira casa da rua, subiu os degraus, tirou do bolso uma chave, abriu a porta e entrou. «Aqui está o mistério», disse a mim mesmo e apressei-me em examinar a casa. Parecia uma espécie de prédio de aluguel. No degrau da porta estava caído o lenço dela. Apanhei-o e meti-o no bolso. Depois comecei a refletir no que devia fazer. Cheguei à conclusão de que não tinha o direito de espioná-la. Tomei um carro e segui para o clube. Às seis horas fui visitá-la. Estava sentada num sofá, em traje de chá, um tecido prateado, preso por uns broches de certas estranhas pedras lunares que sempre usava. Era de uma beleza perfeita.
«Alegra-me tanto vê-lo - disse. - Não saí hoje durante o dia».
Olhei para ela, estupefato e tirando o lenço do meu bolso, entreguei-lhe.
«Deixou cair isto esta tarde, Lady Alroy, na Rua Cumnor» - disse eu, calmamente.
Ela olhou para mim, aterrorizada, mas não fez o menor gesto para pegar no lenço.
«Que estava a fazer ali?» - perguntei.
«Que direito tem o senhor de fazer-me perguntas?» - replicou.
«O direito de um homem que a ama» - respondi-lhe. - «Vim aqui para pedi-la em casamento».
Ocultou o rosto nas mãos e desfez-se em pranto.
«Tem de responder-me» - continuei.
Ela ergueu-se e, fitando-me o rosto, disse:
«Lorde Murchison, nada tenho a dizer-lhe».
«Foi encontrar alguém» - exclamei. - «É esse o seu mistério».
Ela ficou terrivelmente pálida e disse:
«Não fui encontrar ninguém».
«Não pode dizer a verdade?» - exclamei.
«Já a disse» - replicou ela.
Eu estava a enlouquecer, alucinado. Não sei o que disse, mas foram coisas terríveis. Por fim, saí às pressas da casa. Escreveu-me uma carta no dia seguinte. Devolvi-lhe, intacta e parti para a Noruega, em companhia de Alan Colville. Um mês depois regressei e a primeira coisa que vi no Morning Post foi a notícia da morte de Lady Alroy. Apanhara um resfriado na Ópera e morrera, dentro de cinco dias, de congestão pulmonar. Fechei-me em casa e não quis ver ninguém. Tinha-a amado tanto, tinha-a amado tão loucamente! Meu Deus! Quanto amara eu aquela mulher!
- E você, foi àquela rua, àquela casa? - perguntei.
- Sim - respondeu.
- Um dia, fui à Rua Cumnor. Não podia deixar de fazê-lo. Vivia torturado pela dúvida. Bati à porta e uma mulher de aspecto respeitável abriu-a para mim. Perguntei-lhe se havia quartos para alugar.
«Bem, meu senhor - respondeu ela - as salas podem ser alugadas, mas há três meses que não tenho visto a senhora e como os aluguéis estão-se a acumular, o senhor poderá alugá-las».
«É esta a senhora?» - perguntei, mostrando-lhe a fotografia.
«É ela, sim, com toda certeza» - exclamou a mulher. - «E quando estará de volta, meu senhor?»
«Morreu» - respondi.
«Oh! meu senhor, não diga!» - disse a mulher. - «Era a minha melhor inquilina. Pagava-me três guinéus por semana simplesmente para vir sentar-se nesta minha sala de vez em quando».
«Encontrava-se com alguém aqui?» - perguntei, mas a mulher garantiu-me que tal não ocorria, que ela sempre vinha sozinha e não via ninguém.
«Mas afinal que fazia ela aqui?» - exclamei.
«Ficava simplesmente sentada na sala, meu senhor, lendo livros e às vezes tomava chá» - respondeu a mulher.
Não sabia o que dizer, de modo que lhe dei um soberano e saí. Agora, que pensa que significava tudo aquilo? Não acredita que a mulher estivesse a dizer a verdade?
- Acredito.
- Então por que ia Lady Alroy ali?
- Meu caro Geraldo - respondi - Lady Alroy era simplesmente uma mulher com a mania do mistério. Alugava aqueles quartos somente pelo prazer de ir ali, de véu descidoe imaginando ser uma heroína. Tinha paixão pelo segredo, mas não passava de uma simples esfinge sem segredo.
- Estou convencido disto - repliquei.
Lorde Murchison tirou do bolso a carteira de marroquim, abriu-a e olhou a fotografia.
Quem sabe? - disse afinal.







Notas
1 vidente
2 Minha bela desconhecida

Thursday, November 03, 2011

OVERDOSE BAR*





“...Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo... ”

Dante Milano




                        Precisa e sensual, Zeth pincelou o batom sobre os lábios, deixando a boca exatamente no mesmo tom de seus cabelos, de suas unhas e de suas roupas, inclusive as íntimas. A poucos minutos do show, a maquiagem estava pronta. Bastava colocar a blusa e subir ao palco. Acendeu um cigarro e ficou a admirar-se frente aos espelhos. Verificou com satisfação a firmeza dos seios arredondados, a linha bem traçada dos quadris e a alvura dos ombros machadianos.
Já apagava o cigarro, quando uma rajada de ar frio lambeu-lhe a nuca. Então, uma pequena caixa de fósforos, com a marca do Overdose, juntou-se à bagana que fumaçava no cinzeiro.
– Sou um grande admirador do seu trabalho – disse Adelar, colocando sobre o toucador uma garrafa de Corvo. Diante do silêncio da garota, girou o charuto entre os dedos e prosseguiu:
– Gostaria de conversar, após o show é claro...
–...Olha, não sei o que você está pensando, mas...
– Negócios minha cara, apenas negócios – disse ele, se aproximando.
– Eu...
– Você pode me conseguir fósforos? Os meus acabaram...
Zeth sentia o odor amadeirado do perfume de Adelar penetrar-lhe pelas narinas. Ele se aproximara tanto que por pouco não lhe pisava os sapatos. Para não ter de encará-lo tão de perto, ela tomou impulso e se esgueirou. Evitando elegantemente ser tocada por ele, estendeu-lhe um pequeno isqueiro e ficou a fitá-lo, com olhos interrogativos. Porém, antes que voltassem a falar, a grande lâmpada vermelha piscou sobre os espelhos, indicando que era hora do espetáculo. Com gestos e palavras leves, Zeth desculpou-se e apontou a saída.
– Depois do teu show, a gente conversa. – disse ele, antes de se retirar. Desceu as escadas com estardalhaço, engoliu algumas aspirinas e, como sentisse imediata necessidade, dirigiu-se ao sanitário.
            Sensual e por vezes obscena, a música de Zeth logo eletrizou o público, provocando uma ebulição de doideiras. Abancado na sua “mesa oito”, Miro sorvia quantidades oceânicas de uísque. Embora estivesse excitado com o movimento e com a música, ele pouco se movia e quando o fazia era para acender um cigarro ou levar mais uma dose à boca. Gostava realmente da sensação que a bebida lhe causava. O calor no corpo, o ardor nos olhos e a sensação de controlar a própria loucura faziam com que se sentisse pleno de vida. De um estalo, resolveu ir ao banheiro a fim de inalar cocaína. Antes, porém, encomendou outra dose e deixou o maço de cigarros junto com o copo sobre a mesa, fazendo um sinal para que o garçom lhe mantivesse o lugar reservado.
Do lado de fora, dois inseparáveis companheiros desciam de um táxi em meio a uma roda de belas mulheres.
– Essa noite vai ser demais, mai bróder! Hoje a cobra vai fumar, assoviar e chupar cana. Só quero tomar umas duas e me danar com uma diabona destas até o dia amanhecer. Vamos nessa, mai bróder. Vamos nessa...
Rapidamente, passaram pelos leões-de-chácara, driblaram os travestis e convenceram duas prostitutas a acompanhá-los. Instantes depois, postaram-se ao lado da mesa, onde repousavam os cigarros e o copo de Miro. Sempre tomando a frente de tudo, Candô mandou que Chicó e as moças se acomodassem, sem perceber que a mesa dava sinais de estar ocupada. Aproximou-se do balcão para fazer o pedido, no intuito de ser atendido mais rápido e, olhando para trás inadvertidamente, assistiu Adelar tomar a frente de Chicó e sentar-se à mesa. Indignado decidiu tomar satisfações com o desconhecido. Antes que isso acontecesse, porém, Miro se aproximou e, com razoável delicadeza, explicou que já ocupava a mesa desde o início do show, apontando a carteira de cigarros, para provar o que dizia.
– Escute aqui, fedelho – retrucou Adelar – vou ficar sentado aqui até essa merda barulhenta acabar. Procure outro lugar se quiser manter seu traseiro inteiro, entendeu?
– Você não está sendo educado – disse Miro, imaginando partir a socos a cara de Adelar. Candô, vendo o clima esquentar, decidiu passar de fininho entre os dois e procurar outro lugar para ficar. Pegou sua garota pela mão e fez um maneio de cabeça sinalizando para que Chicó o acompanhasse. Irritadíssimo, em meio à sua discussão com Miro, Adelar deu um forte empurrão em Candô, fazendo-o desabar sobre a mesa. Foi o começo do tumulto.
A partir da reação de Candô, garrafadas, socos, pontapés e cadeiradas sobraram para todos que estavam por perto, alastrando a briga. Dois seguranças do clube chegaram ao local no momento em que Adelar, caído, sacava de uma pistola. Um deles, muito forte e alto, tentou evitar o disparo, mas acabou alvejado no ombro. Menos sorte teve o outro que, ao empunhar um revólver, foi baleado na cabeça e morreu instantaneamente. Uma grande correria se formou e várias pessoas se feriram.
Adelar, aproveitando o momento de extrema confusão, apontou sua arma para as costas de Miro, mas, no exato momento do tiro, Candô desfechou-lhe um violento golpe, colocando-o por terra. O rock ainda soava em poderosos acordes, na hora em que Donato e Heliogábalo entraram atirando.
Miro saiu correndo para os fundos, seguido de Candô e Chicó. Movidos pelo medo, os três conseguiram transpor a minúscula janela do banheiro das mulheres e caíram na praia. Miro gritou para que eles o acompanhassem até o carro.
Com as mãos trêmulas e muito ofegante, quase não conseguiu abrir a porta. Mas, ao volante, a adrenalina serviu para aprimorar-lhe os reflexos. Saiu em alta velocidade numa manobra precisa e já ia desaparecer pela avenida, quando avistou Zeth, pelo retrovisor. Retornou imediatamente transpondo o canteiro, enquanto os truculentos capangas de Adelar carregavam o patrão desmaiado.
Zeth abriu a porta e se atirou no banco traseiro do automóvel, que partiu em grande disparada. Candô e Chicó pareciam ter perdido o sangue.
– A gente tem que voltar pro circo, mai bróder, já tô ficando com medo de andar nesta cidade aqui. Pra todo lado que a gente vai rola uma merda, porra.
– O circo tá do outro lado da cidade. Não acho que seja uma boa ir pra lá agora. – argumentou Miro – Se vocês estiverem a fim, a gente pode ir pro apê da Zeth. Tenho umas coisas e... Bem, se não fosse aquele teu soco eu nem ia poder cheirar mais...
– Candô, mai bróder. Candô. – disse o pirófago, estendendo a mão. – Este camarada aqui é o Chicó, morou? Gente fina. Circense. Gente da gente...
– Miro. Meu nome é Miro.
– Ô, mai bróder – disse Zeth, imitando Candô – enfia a mão nesse porta-luvas aí e pega um uísque pra mim. Afinal, que merda foi essa que rolou, com bala pra todo lado?
Miro e Candô cuidaram das explicações, reconstruindo os momentos dramáticos por que passaram, com ligeiras interferências de Chicó. A cada detalhe contundente, Zeth levava a mão à testa e cuidava de anestesiar o coração com mais um gole.
Talvez em função do nervosismo provocado pela agudeza do ocorrido, somente quando chegaram ao apartamento é que Candô e Chicó se deram conta de já terem visto o casal, em outra ocasião. Indiferente ao fato, Miro abriu uma garrafa de vodca e pôs a cocaína no prato.
Todos passaram a falar muito em função da droga e um sem-número de canudos de papel foi paulatinamente se amontoando pela sala. Falou-se de dinheiro, de sonhos e do que cada um teria coragem de fazer para conseguir realizá-los. Até mesmo o tímido Chicó tagarelava como um louco. Cinco gramas, dez gramas e mais uma garrafa de bebida, agora um conhaque. Vez por outra, um capiroto travesso derrubava talheres na cozinha. Zeth chegou a brincar que eram seus fantasmas de estimação e arrancou risos além do normal.
A tensão parecia ter-se dissipado. Tudo agora era euforia. A euforia do pó. Miro e Zeth sentiam-se como verdadeiros amigos de infância da dupla circense. Risos, brindes, abraços. Era uma festa.
            Era. Sem que nenhum som estranho fosse notado, Adelar e seus capangas surgiram, empunhando poderosas escopetas.
– Vamos logo ao assunto, seus merdas – rosnou Adelar, babando-se todo. Ato contínuo, entregou a arma para Donato e virou violentamente a mesa, surpreendendo a todos. De dedo em riste e espumando como um cão hidrófobo, prosseguiu:
– Vocês se meteram numa grande bosta...
– Foi só uma briga, um mal entendido – disse Miro querendo acalmá-lo – a gente pode resolver de outro jeito...
– Ah! Você não sabe do que eu estou falando, não é fedelho? Vou facilitar pra você. Na noite de 31 de outubro, você, esta putazinha de merda e o resto da tua gangue de filhas-da-puta acenderam uns foguetinhos na praia e foderam com uma transação minha. Deu pra lembrar?
– Não sei do que você está falando – sussurrou Zeth.
– Cale a boca! – gritou raivosamente Adelar, aproximando-se tanto, que Zeth pode sentir-lhe o hálito asqueroso. Passando a mão pelos cabelos oleosos, Adelar fingiu acalmar-se e prosseguiu com voz moderada, carregada de sarcasmo:
– Vocês causaram um grande prejuízo à Organização. Isso irritou algumas pessoas e elas reclamaram pra mim. É preciso que vocês saibam que isso não se faz. Vocês foram maus meninos. E ainda por cima me agrediram. Logo eu, um homem de respeito. Uma pessoa que nunca fez nada a vocês...
– Olha eu não sei dessa história de foguetinho nem de nada disso aí que você falou mai bróder, eu nem moro aqui e...
– É melhor calar a boca, seu bichinha de merda. Já enterrei muita gente por menos que isso.
Intuindo que Miro seria o líder do grupo, Adelar passou a dirigir-se exclusivamente a ele:
– A Organização perdeu alguns milhões nessa jogada, por exclusiva culpa de vocês. Isso significa que vocês têm um grande débito. Um débito que nós viemos cobrar. O correto seria que vocês pagassem com a vida. Mas, para mim, a vida de vocês não vale nada.
– Ainda bem – deixou escapar Chicó, enfezando Adelar, que com um violento puxão atirou-o ao chão e pisou-lhe o pescoço. Candô, angustiado, o interpelou:
– Aí, mai bróder, vai logo dizendo o que é que tu quer, compadre. Se fosse pra matar a gente, a gente já tava morto. É ou não é?
– O menino é inteligente. Que beleza! Assim você facilita. Eu gosto disso. Gosto de verdade.
            Alinhando o paletó, Adelar deu as costas, passou em meio aos capangas e depois de algum tempo voltou-se dizendo:
– Vocês vão fazer um servicinho para a Organização. Se fizerem tudo certo, deixo vocês viverem e ainda arrumo um dinheirinho pra vocês passearem. Mas, se vocês falharem, era uma vez... Deu pra entender? Ótimo! Estejam aqui, às três da tarde, sem ressaca e sem paranóia. Não tentem nenhuma besteira. Pode ser pior.
            Com um olhar, Adelar comandou seus capangas e saiu sem mais nada dizer. Zeth, Miro, Candô e Chicó entreolharam-se estupefatos. Incitado pelo capiroto travesso, o medo os mastigou com suas impiedosas mandíbulas de mármore.



*Excerto do livro “O PLANO”, de Marcello Chalvinski. Prêmio G. Dias de Literatura – SECMA 2008

Thursday, October 27, 2011

I DRINK JACK DANIEL'S









Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
José Régio




sou menino

pequeno vendaval
de mãos pequenas
espiando todas as janelas

órfão de tudo
dileto enteado
do vento sul

já estive aqui
já estive ali
já estive fora
já estive em mim

vi muitas coxas & saias
vi raiva & vi navalhas
vi fornos
vi infernos & vi mortalhas

mas não há como conter
o turbilhão que se espalha

ser menino
traz desvantagens
ao espírito

nada há que me valha
se não crio desordem
minh’alma falha

eis minha mãe
guardiã de segredos
de terras distantes
de eras distantes
de um mundo distante


vivo,
tenho todo tempo que preciso
para criar rebuliço

armado de verbenas
& magnólias
parto ao meio
a luz das cidades
(orgulho-me de ser perigoso)

posso prescindir
do riso & do choro
posso prescindir enfim
de quem me console

neste setembro de sizígia
& agulhas perfurantes
feitas de mágoa
i drink jack daniel´s

(estou fora de controle)











MARCELLO CHALVINSKI - TEMPORAL

Tuesday, October 25, 2011

E ASSIM EM NÍNIVE






"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

"Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

"Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."







EZRA POUND [Trad.: Augusto de Campos]

ARTE: TOM COLBIE



And Thus in Ninive


"Aye! I am a poet and upon my tomb
Shall maidens scatter rose leaves
And men myrtles, ere the night
Slays day with her dark sword.

"Lo! this thing is not mine
Nor thine to hinder,
For the custom is full old,
And here in Nineveh have I beheld
Many a singer pass and take his place
In those dim halls where no man troubleth
His sleep or song.
And many a one hath sung his songs
More craftily, more subtle-souled than I;
And many a one now doth surpass
My wave-worn beauty with his wind of flowers,
Yet am I poet, and upon my tomb
Shall all men scatter rose leaves
Ere the night slay light
With her blue sword.

“It is not, Raana, that my song rings highest
Or more sweet in tone than any, but that I
Am here a Poet, that doth drink of life
As lesser men drink wine.”

Tira-gosto