Monday, February 28, 2011
RIMA PETROSA I
uma bruteza
límpida
que em nada se detém
uma crueza
lâmina
que se apaga em ninguém
uma lindeza
nítida
que a si mesma sustém
uma ingênua fereza
feita só de desdém
uma dura candura
que nem loba que nem
uma beleza absurda
sem porquê nem porém
um negar-se tão rente
que soa um shamisen
uma causa perdida
um não vem que não tem
HAROLDO DE CAMPOS
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Haroldo de Campos,
Petrosa
CÂNTICO NEGRO
(Da Série Influências)
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
José Régio
.
DON JUAN NOS INFERNOS
(Da série Influências)
Quando ao mundo da treva desceu Don Juan,
Assim que a Caronte o óbolo pagou,
Um mendigo sombrio, mirada malsã
E braço vingador, cada remo tomou.
Com as roupas abertas e os seios de fora,
Um bando de mulheres, na negra manhã,
Rebanho sensual que matadouro implora,
Mugia atrás do herói num lânguido cancã.
Leporelo, a zombar, o salário cobrava.
O velho Don Luís, totalmente tantã,
Apontava a um morto, que ali passava,
O filho que jogou na lama o seu clã.
Histérica de dor, a casta e magra Elvira,
Ao marido traidor que era o seu afã,
Suplicava um último olhar sem mentira,
Um sorriso com a velha pose de galã.
O gigante de pedra, visão imponente,
Assomava à proa tal Leviatã,
Mas o calmo herói, a tudo indiferente,
Olhava sem temor o reino de Satã.
Charles Baudelaire
.
TORPES TORRENTES
Fernando Abreu
.
Sunday, February 27, 2011
PURO MEL
porque te amo,
o modo como você se move
é tigre, fim de tarde, arrebol
porque te amo,
o modo como você sorri,
mesmo quando chove, faz sol
porque te amo,
o modo como você olha perfuma,
afeta, arde, tinge
porque te amo,
o modo como você fala
incendeia, colore, atinge
porque te amo,
o modo como você cala
é imponência, majestade, esfinge
é imponência, majestade, esfinge
porque te amo, é tudo mel.
Puro prazer.
Puro prazer.
Marcello Chalvinski
ANTÔNIO CARLOS ALVIM: QUE TAL ESSA?
Neste momento histórico em que ouvimos tanto falar de um Papa "pop", Marcello Chalvinski abre seu novo escrito citando o livro bíblico não-apócrifo "Gênesis 7:19". Pura coincidência .
A poesia que abre o Temporal nos faz lembrar de João Cabral de Mello Neto , ou melhor , inspira-se no poema "Lições da Pedra " do autor pernambucano .
Encontramos neste livro pérolas como
"Cerquei com palavras
(atrevido )
na verdade
de um tamanho sofrido"
No entanto , a cosmogonia poética de Marcello Chalvinski gravita em torno do "moderno " (...atravessou o mar de Kara/ &/ era pacífico / índico/ blues ...) tateando o almejado "eterno " (...o perfume da rosa-dos-ventos / libertando-se de todos os mapas ...). E já que estamos falando de lições , não esqueçamos o lecionado pelo "poeta maior ":
"Cansei de ser moderno
Quero é ser eterno ."
(Carlos Drummond de Andarade)
Antônio Carlos Alvim
"Marcello Chalvinski é o último grande poeta underground da literatura maranhense ."
Antônio Carlos Alvim
Saturday, February 26, 2011
FUGA DE MURGHAB
no vão
dos meus pensamentos erráticos
prefiro desenhar o tempo
os aéreos cabelos teus
quero aqui esboçar cogumelos
psilocybes aéreos
na química dos vendavais
matizarei palavras em flor
&
a abstração do músico
estamparei no espaço da fala
a minha fotografia falada
do tempo !
crônons
macunaíma
direi também que não existo
da mágica imagética
tenho horror à dialética
encaro as mandíbulas
da fera apoplética
da incerteza
& pincéis imantados
de física quântica
hei de expressar a temporalidade
& a eterna ânsia
de vencer com palavras
o monstro destruidor de coisas
engendro assim
o cavaleiro pária
& bicicletas roubadas aos amigos
romperei os grilhões
os vôos acrobáticos
corre em mim o fino prazer
dos desafios
serei contudo gentil
se é tempo de chuva
se é tempo de estio
de friedmann
manhãs-maçãs
uvas-messalinas
há psicotrópicos
& pégasos
de orvalho entrópico
há elos
dialelos
& divinas musas
de seios belos
(repetirei em verso tátil )
empunharei o contratempo
do momento
é uma noção sem sustento
de mãos dadas
vamos nos lançar ao vento
os relógios
os sinos já não dobram
os demônios já não tentam
vamos meu amor atento
vamos de mãos dadas
Poema: Marcello Chalvinski
Arte: Tom Colbie
Arte: Tom Colbie
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