Mas quem diabos é Marcello Chalvinski, autor deste aguaceiro todo? O publicitário premiado? O flaneur desnaturado? O flanelinha das flores de vidro? O trânsfuga da Akademia dos Párias? Até onde sei, Vossa Marceleza é tudo isso, porque é no fundo da alma um brancaleônico cavaleiro apaixonado pelas palavras. Foi essa fissura incondicional que me aproximou dele quando o conheci sei lá quanto tempo atrás, numa época em que todos nos candidatávamos a mártires e, na fogueira onde ardíamos, aprendíamos um bocado sobre a vida e a morte. E olha que naquele tempo Marcello já fazia pose de sobrevivente. Tempo vai, como o altar do sacrifício não nos quis, descolamos um lugarzinho entre os vivos, suando no calor dos caixas eletrônicos, mas também vendo a lua cheia e o sol se pôr e, acima de tudo, escrevendo poesia, a sublime promessa que nos fizemos naqueles anos intensos de luz e cegueira. Marcello, um sobrevivente profissional, já disse a que veio há alguns anos, com Anjo na Fauna. Agora vem ao que disse com Temporal, livro de umidade, ferrugem e maresia, onde cada fragmento luminoso tem que ser raspado pelo olho atento do voyeur até que se revele a crosta de seu cristal. Afinal, um pirata não entrega assim tão fácil seu tesouro, principalmente quando ele resulta de uma pilhagem sistematicamente praticada desde os tempos homéricos.
Portanto, leitor, poupo-me o trabalho de recomendar cuidado. Esqueça cartas náuticas, escaleres e as recomendações dos sábios de El Rey. O único jeito de se assenhorear desse butim e se deixar levar/lavar por esse temporal que, aliás, é uma enxurrada atemporal que vem jorrando desde que o tempo é poesia. O que Marcello faz é exercitar seu legítimo direito de entrar na corrente. E tentar nos arrastar com ele.
Fernando Abreu
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