“Exceto o homem , nenhum ser
semaravilha por existir”.
se
Schopenhauer
Parecia não haver solução para o tédio . Tedium vitae, pensava. Talvez o problema fosse esse : pensar . Pensar o sentido da vida , afinal . Talvez houvesse grande solução na esquina . Talvez um estalo . Talvez um patrocinador . Talvez . Lembrava Virgílio. E Mecenas . Entretanto , o fato primeiro é o tédio . Não encontrava o sentido da vida . Convinha-lhe saber que era uma charada . Uma gincana . Um desafio desde os tempos de menino . Charada . Enigma . Adivinhação . Jogo . O jogo da vida . Lance de dados . Deus . Física . Lao Tse. Salomão. Mallarmè.
Fazia arte . Escrevia, desenhava, pintava, compunha. Tinha filhos , tinha mulher . Teve mulheres . Vira morrer alguns amigos , alguns parentes , conhecidos . Envelhecia. Àquela idade , era certo buscar o sentido da vida . Precisava ser rápido , agora . Sentia-se adulto . Homem . Decidido . Pronto . Faria o que fosse necessário .
Precisava ser rápido . O sentido da vida escondia-se em um lugar diferente a cada dia . Sempre próximo . Podia estar na geladeira ou no carro . Podia estar na rua , na praia , no bar . De bares é fato que gostava bastante . Mas tinha que trabalhar . Parecia, realmente , não haver solução para o tédio . A não ser , é claro , pensar .
Queria realmente encontrar o sentido da vida . Seria como um aleph, uma porta mágica , uma visão , uma panacéia , uma saída . Àquela idade , enfadado pelo trabalho , via-se na iminência de uma atitude definitiva . Haveria, sim , de atirar-se sem demora na única empreitada digna : buscar o sentido da vida . Senão , o que fazer ? Matar-se?
Havia lido Dostoievski. Comer , beber , dormir , respirar , sujar , procriar ... Para ele , era como voar , roubar , construir um ninho . Precisava de algo maior para alimentar o seu espírito altivo de “homem superior ”. Ou então , que fosse animal mesmo . Pássaro , gato , urso ...
É fato que a vida não deixa o seu sentido à mostra . Nem eu deixaria. Expor demais desvaloriza. Além disso, se o sentido estivesse à mostra , não haveria sentido em buscá-lo.
Busca-se o sentido da vida de várias formas . A primeira , quase sempre , é a religião . A crença na imortalidade da alma . Essas coisas . Porém , é preciso considerar que , àquela época , a mecânica sobrepunha espiritualismo e materialismo à força de probabilística. Além disso, para ele , o sentido da vida era charada , adivinhação , descoberta , magia ...
Havia lido um pouco da bíblia e, se não me engano , em Eclesiastes, descobrira que não se deve querer saber tudo . Mas , como ele dizia: “a consciência é uma merda!”.
Acho que gostava dos russos. Falava quase sempre em suicídio por tédio . Falava do poema de Iessiênin. Recitava Augusto dos Anjos : “... Eu , filho do carbono e do amoníaco ...” e também Macbeth, ato cinco , se me recordo com clareza . De minha parte , gostava de lembrá-lo de que há quem prefira “a dor à morte e o inferno ao nada ”. Baudelaire, naquele tempo , já era comigo .
Éramos grandes amigos . Ele buscava o sentido da vida . Eu vivia. Por amizade , ajudei-o com a abordagem religiosa . Encontramos a única verdade confortadora: a vida eterna . Sem ela , a vida não fazia sentido . Não faz. Ainda creio. Aceito opiniões divergentes . Gosto de vê-las soltas . E é natural pô-las em vôo sobre tal assunto . Sei também que se pode banalizar , satirizar e destruir à moda de Sade. Mas , se não há viagem nem destino , tampouco há vida . Digo vida diferente de comer , beber , dormir , respirar , sujar , procriar ...
Tentarei então ajustar a narrativa . Afinal , urgindo como o tempo urge, não temos um segundo a perder . Neste instante em que escrevo, da entrada , alguém grita : “Se vamos correr , não tenhamos pressa !”. Mas , deixemos isso de lado ... Uma só coisa no mundo une toda humanidade : a busca da felicidade . Entretanto , para o homem que abriu o mundo , a busca da felicidade era a busca do sentido da vida .
Esperava por Deus . Tinha uma percepção diferente de zero . Como os fenícios . Pensava o “incontível”, não o vazio . No mais , precisava trabalhar . Não era um homem de posses . Sua riqueza era pensar . Pensava.
O trabalho era-lhe enfaro . Queria filosofar . Queria viver . Queria escrever , desenhar , pintar , compor . Queria estar com os filhos , com a mulher , com os parentes , com os amigos , fazer orgias . Mas precisava trabalhar . E precisava ser rápido .
Foi no ano de 1986 que o conheci. Lia Borges, Garcia Lorca... Calçava botas estranhas, de andarilho . Tinha uma peixeira . Pernambucana . Abria a vida à faca , a fogo e metáforas . Levei dezoito anos para me decidir a escrever sobre ele . Sua busca pelo sentido da vida não se encaixava em juízo de valores ou em qualquer base filosófica conhecida . Tampouco buscava a perfeição . Buscava o entendimento , a compreensão ... O ‘sentido ’, para ele , não era visto como objetivo ou propósito , mas como lógica , significado , senso .
De minha parte , sempre achei a busca do sentido da vida maravilhosa . Principalmente pelo seu caráter altivo e inatingível . Naquele tempo , ação já era comigo . No entanto , é preciso dizer que meu amigo tinha uma faca . Uma pernambucana . Uma peixeira . Não era só lâmina , como a de João Cabral. Mas tinha dois gumes , feitos no esmeril . Era uma faca potencialmente bandida . Não como relógio ou bala , ou peso . Mas como faca mesmo .
Há um fato importante que lembro ainda com muita clareza : o hedonismo . Bem certo que era mais cirenaísmo que qualquer outra doutrina . Aristipo de Cirene. Essas coisas . Hedonismo . A descoberta do hedonismo . Meu amigo tinha uma peixeira pernambucana e era hedonista naquele momento . Era uma época de computadores . Inovações que se obsoletam como tudo diante do tempo . Eu vivia. Ele , você já sabe.
Sentamo-nos à beira-mar . Dava pra ver a ponte . Tinha uma sombra fina de coqueiro sobre a amurada . Falou-me de desejo , de vontade , de necessidade , de prazer , de respirar , de gozar , de se embriagar , de viver e, pra ser sincero , falou coisas que agora não vou lembrar , embora não dê pra esquecer a impressão que me causaram. Bebemos, fumamos, gargalhamos e mais uma vez falamos, falamos e falamos. Tenho tatuadas na memória muitas imagens e muitas palavras daquele dia .
Os russos, suicídio por tédio , o poema de Iessiênin, Augusto dos Anjos e até Macbeth, ato cinco , cena cinco , se me recordo com clareza . “Arrasta-se neste passo sorrateiro dia após dia até a última sílaba de tempo ”, disse. Fiquei calado . Não deu pra falar . Não deu pra argumentar . Ainda que Baudelaire, naquele tempo , já fosse comigo .
Acendeu um cigarro vaporoso e desembainhou a faca . Uma peixeira pernambucana , que não era só lâmina , como a de João Cabral. Mas tinha dois gumes , feitos no esmeril . Despediu-se de mim , dizendo que iria procurar novas charadas . Com delicadeza , afastou os pilares da ponte . Caminhou sereno sobre as águas e, com facilidade , graças aos dois gumes da pernambucana , cortou uma parte do céu . Pôs a faca entre os dentes , arrumou os cabelos e passou pela fresta .
A fresta se fechou e tudo voltou à normalidade. Jamais descobri o sentido da vida . Apenas vivi. Comi, bebi, dormi, respirei, sujei, procriei. Também voei, roubei, construí um ninho . Adoro Baudelaire. Continuo hedonista . Cirenaísta, talvez . É estranho falar nisso. Principalmente quando se está morto . Essa é realmente uma época terrível , não é? Talvez por isso você reverencie a minha sorte . Contudo , não se esqueça que é uma sorte de morto . Você sabe. Morri muito antes de você ler esta história .
(Excerto de “Carnaval”, Marcello Chalvinski, Brancaleone Editores)