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TRADUTOR

Wednesday, February 09, 2011

VALÉRIA

 


                   – Se não for interrompido, contarei tudo. Ainda na sala de observação me apaixonei por Valéria. Antes mesmo de vê-la, me apaixonei. Valéria, Valéria... Como eu poderia não me apaixonar por Valéria? Ah, Valéria! Seus gemidos percorriam o ar, atravessavam os biombos e chegavam aos meus ouvidos como uma sonata celestial. Mesmo estando em péssimas condições, pude concentrar-me o suficiente para desenhá-la em minha mente. Era morena, o que , na minha terra, é ser branca de cabelos pretos. Sim, ela era muito branca. E, com certeza, tinha os cabelos muito pretos. Com voz suave e delicada reclamava das dores que sentia e das agulhas que a perfuravam. Ainda que me contorcesse na agudeza de meu sofrimento, fui capaz de deduzir que ela também estava .
Você tem alergia a algum medicamento? – Perguntaram.
Que eu saiba, não. Está doendo muito – disse ela.
Agora você vai dormir um pouco...
Tão logo ela quedou desacordada, passaram a me atender. Eu sentia dores abdominais terríveis e estava tomado de febre. Entretanto, antes mesmo de relatar meu estado, perguntei ao enfermeiro qual era o nome da moça.
– Valéria – respondeu ele, apertando o garrote.
Ouça – disse eu, tentando driblar o seu apressado mau humorela é uma amiga de infância. Se eu for internado, garanta-me que me colocará próximo a ela.
Isso é com a enfermeira-chefe – disse ele, pouco antes de me ver desfalecer.
         Despertei com um fel coalhado na garganta. Sentia inchaços no palato e minha boca estava recoberta por uma espuma seca. Tudo ao redor se mostrava pior do que eu podia esperar. O teto era horrível. As paredes, encardidas. Uma sinfonia de vozes e gemidos completava a morbidez reinante. Levando a mão aos lábios, percebi o gigantismo atingido pelo meu braço, devido à infiltração de soro. Algo havia, contudo, para minha imensa satisfação: uma jovem mulher dormitava no leito a meu lado. Contemplei-a esquecido de tudo. Na verdade, poderia contemplá-la por toda vida.
Com olhos precisos, percorri a negrura de seus cabelos lisos. Do fio central da franja, à testa. Da sobrancelha cerrada, ao traço reto do nariz bem feito. Todos os meus músculos, todos os meus nervos, todas as minhas células sabiam que era ela: Valéria.
         Ah, Valéria! Nem a feiúra dos lençóis numerados, nem a luz baça da enfermaria, nem o mórbido concerto de ais podia ocultar-lhe o esplendor. A mim, dor nenhuma importava naquele instante. Valéria, Valéria... Vê-la era como ouvir uma melodia arquitetada pelos céus. Era como mergulhar em águas calmas. Era como dormir um sono de homem justo.
Do lado em que me encontrava, podia ver-lhe os dedos dilatados, como se estivessem atados pelo esparadrapo à mão que recebia o soro. Via o perfil do rosto clássico. Materializava a curva aguda dos seios. Sonhava o toque. A seda alva da pele. Valéria, Valéria... Como podia existir criatura assim, tão abençoada pelo talento de Deus, tão ao meu agrado, tão do meu jeito, a ponto de arrebatar-me de um golpe o coração?
         Embora dormíssemos grandes períodos, devido aos sedativos, não tardou o dia em que nos vimos despertos.
– Valéria? – arrisquei timidamente.
– O quê?
Você se sente melhor?
– Estou fraca. Quem...
Nós chegamos juntos. Fomos internados no mesmo dia. Você tem alguém?
– Hã?
Eu quero ajudar. O que você precisar...
– Quero água.
         Era minha chance de agradá-la. Pus-me de e, com as pernas bambas, caminhei até o bebedouro. Tinha tonturas e o braço, com o qual elevava o frasco de soro, ameaçava explodir em câimbras. Meu abdômen expressava sua dor em roncos doentios. Meus chinelos de finas solas (gastas em dias de melhor caminhar) pesavam-me agora mais que as próprias pernas. Contudo, jamais me furtaria a um pedido de Valéria. Entre flatulências, eructações e perdas de fôlego, consegui finalmente retornar à enfermaria. Permaneci algum tempo à porta, esperando o mau cheiro se dissipar. Não queria que ela experimentasse aqueles terríveis odores. Enfim, ajudei-a o mais gentilmente que pude e senti-me realmente muito feliz por estar colaborando. Mas, tão logo a água tocou-lhe o estômago, um jato de vômito esverdeado projetou-se sobre mim.
         – Não tem problema, não se preocupe – disse eu, apressado em tranqüilizá-la. Limpei sua boca com uma toalha e recostei-a novamente para que descansasse. Estava pálida e sua pele, apesar do frio, transpirava. Naquele instante imaginei pela primeira vez qual seria sua enfermidade. Que mal invisível a destruía internamente, deixando-a tão formosa no exterior? Dada minha grande experiência em moléstias, pude aventar uma dezena de possibilidades. Entretanto, minhas divagações foram bruscamente interrompidas por uma atendente que me repreendeu com grande veemência. Eu não deveria ter dado água a Valéria. Constrangido e decepcionado, voltei ao meu leito envidando os maiores esforços possíveis para não emitir gases. Cobri-me até a altura do queixo, coloquei o travesseiro sobre os olhos e, em poucos instantes, adormeci.
         Dias correram sem que nenhum de nós manifestasse qualquer melhora. Valéria, aliás, passou a apresentar tosse produtiva. Pobre Valéria. Diligente, eu erguia o cesto de lixo sempre que ela necessitava escarrar. Ah, Valéria! Que coisa horrível. Cheguei a engendrar um apoio com uma pilha de caixas e jornais, para manter o cesto mais à mão e facilitar meu ofício. Essa expectoração de Valéria somada à minha desagradável flatulência motivou pedidos dos outros pacientes para que fôssemos transferidos a um canto da enfermaria, entre a janela e a entrada dos banheiros. Nada poderia ter me agradado mais.
         Embora evitássemos trocar detalhes de nossas infelizes vidas pregressas, Valéria e eu estávamos cada vez mais íntimos. Para gastar o tempo, passamos a observar com secreta atenção todos os movimentos do hospital. Era um jogo divertido. Logo, sabíamos as escalas dos médicos, os turnos dos enfermeiros, os horários dos atendentes e até os de faxina, que por sinal eram bastante escassos. Controlávamos também os tipos e os horários das medicações a que éramos submetidos. Minhas claudicantes idas ao bebedouro serviram para mapear boa parte do andar. Identificamos entradas, saídas, janelas, salas, dispensas e, além disso, as pessoas, os modos, as idiossincrasias. Catalogávamos tudo em fichas furtadas ao posto de enfermagem e nada, absolutamente nada parecia escapar à nossa minuciosa investigação.
         Entre as nossas mais estranhas descobertas estava o que passamos a chamar de “As Aventuras da Sra. Brusque”. Faceira como uma galinha, a Sra. Brusque era enfermeira-chefe e adorava tirar plantão no posto que nos atendia. Dona de um furor uterino incontrolável tornara-se amante de dois vigias noturnos que, sem saber, se revezavam apaixonadamente em satisfazê-la, às altas da madrugada. Sempre que ocorria uma emergência, era aquele corre-corre. Valéria ria até desencadear a tosse. Ah! Valéria, Valéria...
Quando o inverno chegou ao fim, começamos todos a sentir melhoras. Dois dos enfermos diziam-se completamente curados, mas não houve nenhuma alta em nossa enfermaria. Foi nessa época que surgiu o tal Dr. Reis. Logo de saída antipatizei-o. Irritava-me o modo como ele examinava Valéria. Além disso, em menos de um mês, ele restringiu as visitas e dobrou o número de sedativos. Dormíamos tanto que era quase impossível atualizar nossas anotações. A desconfiança crescia em mim como um câncer. Havia algo errado com aquele Dr. Reis.
Um dia, despertando da sedação, assisti ao Dr. Reis aplicar, ele mesmo, uma medicação em Valéria. Sabia que isso não era certo, mas meu torpor era tão grande que não pude me mover ou dizer palavra. Desse momento em diante, passei a driblar a enfermagem, ocultando comprimidos sob a língua, para não engoli-los. Com um engendro relativamente simples, mas de grande eficácia, desviava o soro e toda a medicação endovenosa direto para o colchão, sem que ninguém percebesse. Ao contrário do que era de se esperar, comecei a me recuperar fisicamente. As dores não incomodavam tanto, as flatulências praticamente desapareceram e o meu apetite crescia incrivelmente. Para não dar na vista, fingia dormir quando administravam os sedativos, reclamava dos gases quando acordava e fingia fraquejar sempre que ia ao banheiro ou ao bebedouro.
Voltei às anotações com grande intensidade e logo constatei que o Dr. Reis dava mais atenção a Valéria que a qualquer outro paciente. Estava certo de que ele tramava algo. Nêne e Berger, os pacientes que se diziam curados, tiveram cirurgia marcada pelo Dr. Reis e logo foram transferidos da enfermaria. Além de Valéria e eu, eles eram os únicos que não tinham acompanhantes, nem recebiam visitas.
Três ou quatro dias depois, espionando a Sra. Brusque, descobri que Nêne e Berger haviam morrido.
Não se sabe. Parece que foi algo com a anestesia... – dizia ela ao vigia da noite.
Que coisa, hein?
Pois é. E se ninguém reclamar os corpos, eles vão parar numa vala comum.
Eles eram indigentes mesmo?
Como é que eu vou saber? Aqui vem gente de todo jeito. Magnatas é que eles não eram.
Eu ainda estava com a mão no queixo, tentando concatenar as idéias, quando ouvi passos no corredor oposto. A Sra. Brusque se aprumou rapidamente e o guarda tomou o caminho da guarita de segurança. Era o Dr. Reis que se aproximava.
Doutor Reis. O senhor aqui a estas horas? – Perguntou a Sra. Brusque.
– Estou completamente sem sono. – disse ele – O caso daqueles dois rapazes me abalou muito. A senhora sabe...
Claro.
– Vim dar uma olhada nos meus pacientes. Se a senhora não se importa, é claro...
– De forma alguma.
Propositadamente esbarrei no Dr. Reis, à entrada da enfermaria. Queria olhar dentro dos seus olhos e perscrutar sua alma.
Você deveria estar dormindo a esta hora. Como estão as dores?
Vão e vêm. Agora não estou sentindo nada...
– O repouso é muito importante.
– É que preciso beber água...
– Pedirei à enfermagem que providencie uma garrafa.
– É muita gentileza sua – disse eu, sem esconder a ironia.
Aparentando grande tranqüilidade, Dr. Reis percorreu leito por leito observando os pacientes adormecidos e lendo os seus prontuários.
– Foi na noite em que...
– Creio ter dito que contaria tudo, desde que não fosse interrompido.
– Desculpe. Eu queria...
Assim as coisas ficam mais difíceis.
– Desculpe. Não interromperei mais.
Bem. O Dr. Reis foi de leito em leito verificando os prontuários. Logo em seguida, ele recebeu uma ligação e foi para o banheiro. Eu o segui. Sabia que havia algo errado com aquele Dr. Reis. Foi então que descobri. Ele falava baixo, mas estava muito nervoso. Precisava conseguir um rim AB negativo naquela noite. Não dava tempo de marcar cirurgia como ele fez com os outros dois. Havia muito dinheiro em jogo. E quem estava à mão?
Quem?
– Valéria, é claro. Valéria. ela tinha o tipo sangüíneo que ele queria. Maldito!
Como aconteceu a briga?
Ele terminou a ligação dizendo que daria um jeito. Fiquei trêmulo. Estava desesperado. Então, me aproximei para espiar. Ele havia aberto a maleta, que estava cheia de instrumentos cirúrgicos e preparava uma injeção. Com certeza ia fazer o serviço ali mesmo.
Então, o senhor o atacou?
Claro que não. Eu voltei para a cama. Queria pegá-lo em flagrante. Não é assim que se diz, detetive? Eu ia pegá-lo em flagrante. Ah! Bem. Primeiro ele saiu. Deve ter ido a outra enfermaria e de chamado a Sra. Brusque. Eu ouvi o sinal e depois que ela deixou o posto foi que o Dr. Reis voltou. Estava suando. Dona Marocas, do leito seis, deu um gemido e ele aplicou logo alguma coisa nela. Ela apagou e ele veio direto para a cama de Valéria, o maldito.
Então, o senhor...
– Caralho! Você quer que eu conte essa merda ou o quê?
–...
Eu esperei o miserável. Vi quando ele injetou a anestesia. Valéria corria perigo. A minha Valéria. Nós nos amávamos. Fazíamos amor às escondidas no banheiro das mulheres. Tínhamos planos. Ela estava grávida. Grávida! Sabe o que isso significa?
–...
– Há anos eu não vivia uma alegria tão intensa. Até pensei em voltar a reger. O senhor sabe. Fui um grande maestro antes de cair em desgraça. Valéria, Valéria...Valéria era a minha vida. Era o meu renascimento. Eu precisava fazer algo. Aquele maldito ia estragar tudo. Maldito Dr. Reis!
– Sr. Cruz, não é minha intenção interrompê-lo, mas poderia falar sobre o seu embate com o Dr. Heyes?
Ele não ia simplesmente tirar o rim de Valéria. Ele não estava em uma mesa de cirurgia. Ele não tinha aparato, entende? Ele precisava matá-la. Ele, o maldito! Olhava para o relógio e controlava o pulso de Valéria. A maleta aberta... Ah, meu Deus! O quê eu poderia fazer?
Por que o senhor diz que ele precisava matá-la?
Ora, detetive...Com o coração parado, o sangue não jorra. Seria como cortar uma fruta. Aquele maldito sabia disso. Que o diabo o carregue!
Então, o senhor o atacou?
Não. Eu não pensava em atacá-lo. Pulei da cama, apertei a chamada da enfermagem e gritei pra ele que sabia de tudo. Fiz muito barulho e o deixei em desespero, mas nenhum paciente chegou a acordar. Estavam todos dopados.
– O senhor poderia repetir?
– Estavam todos dormindo. O Dr. Reis tinha cuidado deles, o maldito...
Nossa!
– Desculpe detetive. Não tenho como controlar os gases.
Cristo!
Então, a Sra. Brusque retornou. Tratei de contar tudo a ela, mas a miserável também estava envolvida. Disfarçou e correu para chamar o segurança. Não tive outro jeito. Parti para cima do Dr. Reis com o suporte do soro. Bati com tanta força que cheguei a me borrar. Quando o guarda chegou, eu o tinha sob controle. Estava com o bisturi a ponto de abrir-lhe a garganta. Naquele momento foi como ouvir a Fuga em Sol Menor. Tudo estava claro, límpido, fácil. Mandei que o guarda colocasse a arma no chão e a empurrasse para mim. Fiz com que a Sra. Brusque e o Dr. Reis ficassem lado a lado e então disparei contra os dois. vieram os violinos: Concerto Vivace!
– E o guarda?
Eu estava inebriado com a música e o desgraçado me atacou por trás. Foi por causa dele que atingi Valéria. Ah, meu Deus! Valéria, Valéria...
– Conte o que aconteceu com o guarda.
Ele estava me dominando. Mas a maleta estava no chão e eu consegui pegar uma tesoura.
– O senhor o atingiu no pescoço, certo?
– Na jugular, detetive. Na jugular. O sangue jorra forte, sabe? Tocata e fuga, tocata e fuga, sabe? Era isso. Tocata e fuga.
– E o quê o senhor fez?
–Valéria estava morta. Meu filho estava morto. Um médico maldito estragara minha vida pela segunda vez. O que eu deveria fazer? Todos estavam mortos, menos os que dormiam. Malditos enfermos, não ajudaram em nada.
– E o incêndio, Sr. Cruz? Como aconteceu o incêndio?
Você não entende. A música chegava ao fim. Minha alegria chegava ao fim. Tudo por causa daqueles malditos. Decidi que seria o fim de tudo, para todos. O fim do mundo. O fim do Grande Hospital. O fim dos malditos traficantes de órgãos. Com o isqueiro do guarda ateei fogo à pilha de caixas e papéis que eu havia feito. Depois foi juntar alguns lençóis e logo tudo estava em chamas. Eu esperava o silêncio, o terrível silêncio. Mas, para imensa alegria minha, a Nona Sinfonia encheu os meus ouvidos. Que maravilha! Minha vida desgraçada teria uma morte gloriosa e musical.
Mas o senhor não morreu, não é mesmo?
Que lhe parece, detetive? Perdi minha amada, meu filho e minha música. Estou queimado, enfermo e logo vou responder por uma dezena de crimes. Parece-lhe que vivo?
Bem mais que o Dr. Heyes e os outros, Sr. Cruz.
–...
– O Dr. Ricardo Heyes seria homenageado hoje, com o título de cidadão. Deixa mulher e uma filha. Dona Dulce Falcão, a enfermeira-chefe a quem o senhor chamava de Sra. Brusque, tinha uma ficha de 12 anos de excelentes serviços prestados ao Hospital. O segurança morto estava na sua primeira noite de serviço. Deixa mulher e quatro filhos. As suas supostas anotações nunca foram encontradas. A suaamada”, com quem o senhor disse ter convivido por meses, ficou internada a seu lado apenas dois dias e jamais esteve grávida.
–Está tentando me iludir, não é? Você também faz parte dessa corja. Mas não vai tirar de mim o que ainda me resta. O amor de Valéria vive em mim. Em mim, entendeu? O amor de Valéria não vai morrer. Ninguém vai me tirar o amor de Valéria. Ah, Valéria, Valéria... Você está ouvindo, meu amor? É a nossa música. Ninguém vai tirar você do meu coração, meu amor... Minha Valéria. Minha Valéria...
– O senhor parece não se dar conta do que houve, não é?
Nada me interessa, detetive. Minha vida era Valéria. Ah, Valéria, Valéria... Por que tudo isso aconteceu meu amor?
– O senhor vai ficar aqui até se recuperar e, tão logo isso aconteça, irá a julgamento.
– Ah, Valéria, Valéria...
– O Estado nomeará um defensor público.
– Ah, Valéria, Valéria...
Diante do que o senhor acaba de confessar, nãoque esperar muito.
– Ah, Valéria, Valéria...
– A propósito: o nome dela era Cláudia.











Excerto do romance CARNAVAL, de Marcello Chalvinski, Brancaleone Editores
Arte: Tom Colbie

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