– Se não for interrompido , contarei tudo . Ainda na sala de observação me apaixonei por Valéria. Antes mesmo de vê-la, me apaixonei. Valéria, Valéria... Como eu poderia não me apaixonar por Valéria? Ah, Valéria! Seus gemidos percorriam o ar , atravessavam os biombos e chegavam aos meus ouvidos como uma sonata celestial . Mesmo estando em péssimas condições , pude concentrar-me o suficiente para desenhá-la em minha mente . Era morena , o que lá , na minha terra , é ser branca de cabelos pretos . Sim , ela era muito branca . E, com certeza , tinha os cabelos muito pretos . Com voz suave e delicada reclamava das dores que sentia e das agulhas que a perfuravam. Ainda que me contorcesse na agudeza de meu sofrimento, fui capaz de deduzir que ela também estava só .
– Você tem alergia a algum medicamento ? – Perguntaram.
– Que eu saiba , não . Está doendo muito – disse ela .
– Agora você vai dormir um pouco ...
– Valéria – respondeu ele, apertando o garrote .
– Ouça – disse eu , tentando driblar o seu apressado mau humor – ela é uma amiga de infância . Se eu for internado, garanta-me que me colocará próximo a ela .
– Isso é com a enfermeira-chefe – disse ele , pouco antes de me ver desfalecer .
Despertei com um fel coalhado na garganta . Sentia inchaços no palato e minha boca estava recoberta por uma espuma seca . Tudo ao redor se mostrava pior do que eu podia esperar . O teto era horrível . As paredes , encardidas. Uma sinfonia de vozes e gemidos completava a morbidez reinante . Levando a mão aos lábios , percebi o gigantismo atingido pelo meu braço , devido à infiltração de soro . Algo havia, contudo , para minha imensa satisfação : uma jovem mulher dormitava no leito a meu lado . Contemplei-a esquecido de tudo . Na verdade , poderia contemplá-la por toda vida .
Ah, Valéria! Nem a feiúra dos lençóis numerados, nem a luz baça da enfermaria , nem o mórbido concerto de ais podia ocultar-lhe o esplendor . A mim , dor nenhuma importava naquele instante . Valéria, Valéria... Vê-la era como ouvir uma melodia arquitetada pelos céus . Era como mergulhar em águas calmas . Era como dormir um sono de homem justo .
Do lado em que me encontrava, podia ver-lhe os dedos dilatados, como se estivessem atados pelo esparadrapo à mão que recebia o soro . Via o perfil do rosto clássico . Materializava a curva aguda dos seios . Sonhava o toque . A seda alva da pele . Valéria, Valéria... Como podia existir criatura assim , tão abençoada pelo talento de Deus , tão ao meu agrado , tão do meu jeito , a ponto de arrebatar-me de um só golpe o coração ?
– Valéria? – arrisquei timidamente.
– O quê ?
– Você se sente melhor ?
– Estou fraca . Quem ...
– Nós chegamos juntos . Fomos internados no mesmo dia . Você tem alguém ?
– Hã?
– Eu quero ajudar . O que você precisar ...
– Quero água .
– Não tem problema , não se preocupe – disse eu , apressado em tranqüilizá-la. Limpei sua boca com uma toalha e recostei-a novamente para que descansasse. Estava pálida e sua pele , apesar do frio , transpirava. Naquele instante imaginei pela primeira vez qual seria sua enfermidade . Que mal invisível a destruía internamente , deixando-a tão formosa no exterior ? Dada minha grande experiência em moléstias , pude aventar uma dezena de possibilidades. Entretanto , minhas divagações foram bruscamente interrompidas por uma atendente que me repreendeu com grande veemência. Eu não deveria ter dado água a Valéria. Constrangido e decepcionado, voltei ao meu leito envidando os maiores esforços possíveis para não emitir gases. Cobri-me até a altura do queixo , coloquei o travesseiro sobre os olhos e, em poucos instantes , adormeci.
Voltei às anotações com grande intensidade e logo constatei que o Dr. Reis dava mais atenção a Valéria que a qualquer outro paciente . Estava certo de que ele tramava algo . Nêne e Berger, os pacientes que se diziam curados, tiveram cirurgia marcada pelo Dr. Reis e logo foram transferidos da enfermaria . Além de Valéria e eu , eles eram os únicos que não tinham acompanhantes , nem recebiam visitas .
– Não se sabe. Parece que foi algo com a anestesia ... – dizia ela ao vigia da noite .
– Que coisa , hein ?
– Pois é. E se ninguém reclamar os corpos , eles vão parar numa vala comum .
– Eles eram indigentes mesmo ?
– Como é que eu vou saber ? Aqui vem gente de todo jeito . Magnatas é que eles não eram.
– Doutor Reis . O senhor aqui a estas horas ? – Perguntou a Sra. Brusque.
– Estou completamente sem sono . – disse ele – O caso daqueles dois rapazes me abalou muito . A senhora sabe...
– Claro .
– Vim dar uma olhada nos meus pacientes . Se a senhora não se importa, é claro ...
– De forma alguma.
– Você deveria estar dormindo a esta hora . Como estão as dores ?
– Vão e vêm. Agora não estou sentindo nada ...
– O repouso é muito importante .
– É que preciso beber água ...
– Pedirei à enfermagem que providencie uma garrafa .
– É muita gentileza sua – disse eu , sem esconder a ironia .
Aparentando grande tranqüilidade , Dr. Reis percorreu leito por leito observando os pacientes adormecidos e lendo os seus prontuários .
– Foi na noite em que ...
– Creio ter dito que contaria tudo , desde que não fosse interrompido .
– Desculpe. Eu só queria...
– Assim as coisas ficam mais difíceis.
– Desculpe. Não interromperei mais .
– Bem . O Dr. Reis foi de leito em leito verificando os prontuários . Logo em seguida , ele recebeu uma ligação e foi para o banheiro . Eu o segui. Sabia que havia algo errado com aquele Dr. Reis . Foi então que descobri. Ele falava baixo , mas estava muito nervoso . Precisava conseguir um rim AB negativo naquela noite . Não dava tempo de marcar cirurgia como ele fez com os outros dois . Havia muito dinheiro em jogo . E quem estava à mão ?
– Quem ?
– Valéria, é claro . Valéria. Só ela tinha o tipo sangüíneo que ele queria. Maldito !
– Como aconteceu a briga ?
– Ele terminou a ligação dizendo que daria um jeito . Fiquei trêmulo . Estava desesperado. Então , me aproximei para espiar . Ele havia aberto a maleta , que estava cheia de instrumentos cirúrgicos e preparava uma injeção . Com certeza ia fazer o serviço ali mesmo .
– Então , o senhor o atacou?
– Claro que não . Eu voltei para a cama . Queria pegá-lo em flagrante . Não é assim que se diz, detetive ? Eu ia pegá-lo em flagrante . Ah! Bem . Primeiro ele saiu. Deve ter ido a outra enfermaria e de lá chamado a Sra. Brusque. Eu ouvi o sinal e só depois que ela deixou o posto foi que o Dr. Reis voltou. Estava suando. Dona Marocas, do leito seis , deu um gemido e ele aplicou logo alguma coisa nela. Ela apagou e ele veio direto para a cama de Valéria, o maldito .
– Então , o senhor ...
– Caralho! Você quer que eu conte essa merda ou o quê ?
–...
– Eu esperei o miserável . Vi quando ele injetou a anestesia . Valéria corria perigo . A minha Valéria. Nós nos amávamos. Fazíamos amor às escondidas no banheiro das mulheres . Tínhamos planos . Ela estava grávida. Grávida! Sabe o que isso significa?
–...
– Há anos eu não vivia uma alegria tão intensa . Até pensei em voltar a reger . O senhor sabe. Fui um grande maestro antes de cair em desgraça . Valéria, Valéria...Valéria era a minha vida . Era o meu renascimento . Eu precisava fazer algo . Aquele maldito ia estragar tudo . Maldito Dr. Reis !
– Sr. Cruz , não é minha intenção interrompê-lo, mas poderia falar sobre o seu embate com o Dr. Heyes?
– Ele não ia simplesmente tirar o rim de Valéria. Ele não estava em uma mesa de cirurgia . Ele não tinha aparato , entende? Ele precisava matá-la. Ele , o maldito ! Olhava para o relógio e controlava o pulso de Valéria. A maleta aberta ... Ah, meu Deus ! O quê eu poderia fazer ?
– Por que o senhor diz que ele precisava matá-la?
– Ora , detetive ...Com o coração parado, o sangue não jorra . Seria como cortar uma fruta . Aquele maldito sabia disso. Que o diabo o carregue!
– Então , o senhor o atacou?
– Não . Eu não pensava em atacá-lo. Pulei da cama , apertei a chamada da enfermagem e gritei pra ele que sabia de tudo . Fiz muito barulho e o deixei em desespero , mas nenhum paciente chegou a acordar . Estavam todos dopados.
– O senhor poderia repetir ?
– Estavam todos dormindo. O Dr. Reis tinha cuidado deles, o maldito ...
– Nossa !
– Desculpe detetive . Não tenho como controlar os gases.
– Cristo !
– Então , a Sra. Brusque retornou. Tratei de contar tudo a ela , mas a miserável também estava envolvida. Disfarçou e correu para chamar o segurança . Não tive outro jeito . Parti para cima do Dr. Reis com o suporte do soro . Bati com tanta força que cheguei a me borrar . Quando o guarda chegou, eu já o tinha sob controle . Estava com o bisturi a ponto de abrir-lhe a garganta . Naquele momento foi como ouvir a Fuga em Sol Menor . Tudo estava claro , límpido , fácil . Mandei que o guarda colocasse a arma no chão e a empurrasse para mim . Fiz com que a Sra. Brusque e o Dr. Reis ficassem lado a lado e então disparei contra os dois . Aí vieram os violinos : Concerto Vivace!
– E o guarda ?
– Eu estava inebriado com a música e o desgraçado me atacou por trás . Foi por causa dele que atingi Valéria. Ah, meu Deus ! Valéria, Valéria...
– Conte o que aconteceu com o guarda .
– Ele estava me dominando. Mas a maleta estava no chão e eu consegui pegar uma tesoura .
– O senhor o atingiu no pescoço , certo ?
– Na jugular , detetive . Na jugular . O sangue jorra forte , sabe? Tocata e fuga , tocata e fuga , sabe? Era isso . Tocata e fuga .
– E o quê o senhor fez?
–Valéria estava morta . Meu filho estava morto . Um médico maldito estragara minha vida pela segunda vez . O que eu deveria fazer ? Todos estavam mortos , menos os que dormiam. Malditos enfermos , não ajudaram em nada .
– E o incêndio , Sr. Cruz ? Como aconteceu o incêndio ?
– Você não entende. A música chegava ao fim . Minha alegria chegava ao fim . Tudo por causa daqueles malditos . Decidi que seria o fim de tudo , para todos . O fim do mundo . O fim do Grande Hospital . O fim dos malditos traficantes de órgãos . Com o isqueiro do guarda ateei fogo à pilha de caixas e papéis que eu havia feito . Depois foi só juntar alguns lençóis e logo tudo estava em chamas . Eu esperava o silêncio , o terrível silêncio . Mas , para imensa alegria minha , a Nona Sinfonia encheu os meus ouvidos . Que maravilha ! Minha vida desgraçada teria uma morte gloriosa e musical.
– Mas o senhor não morreu, não é mesmo ?
– Que lhe parece, detetive ? Perdi minha amada , meu filho e minha música . Estou queimado, enfermo e logo vou responder por uma dezena de crimes . Parece-lhe que vivo ?
– Bem mais que o Dr. Heyes e os outros, Sr. Cruz .
–...
– O Dr. Ricardo Heyes seria homenageado hoje , com o título de cidadão . Deixa mulher e uma filha . Dona Dulce Falcão , a enfermeira-chefe a quem o senhor chamava de Sra. Brusque, tinha uma ficha de 12 anos de excelentes serviços prestados ao Hospital . O segurança morto estava na sua primeira noite de serviço . Deixa mulher e quatro filhos . As suas supostas anotações nunca foram encontradas. A sua “amada ”, com quem o senhor disse ter convivido por meses, ficou internada a seu lado apenas dois dias e jamais esteve grávida.
–Está tentando me iludir , não é? Você também faz parte dessa corja . Mas não vai tirar de mim o que ainda me resta . O amor de Valéria vive em mim . Em mim , entendeu? O amor de Valéria não vai morrer . Ninguém vai me tirar o amor de Valéria. Ah, Valéria, Valéria... Você está ouvindo, meu amor ? É a nossa música . Ninguém vai tirar você do meu coração , meu amor ... Minha Valéria. Minha Valéria...
– O senhor parece não se dar conta do que houve, não é?
– Nada me interessa, detetive . Minha vida era Valéria. Ah, Valéria, Valéria... Por que tudo isso aconteceu meu amor ?
– O senhor vai ficar aqui até se recuperar e, tão logo isso aconteça, irá a julgamento .
– Ah, Valéria, Valéria...
– O Estado nomeará um defensor público .
– Ah, Valéria, Valéria...
– Diante do que o senhor acaba de confessar , não há que esperar muito .
– Ah, Valéria, Valéria...
– A propósito : o nome dela era Cláudia.
Excerto do romance CARNAVAL, de Marcello Chalvinski, Brancaleone Editores
Arte: Tom Colbie
Arte: Tom Colbie