O BEM SEMPRE VENCE
...MAS O MAL RESISTE
SOBRE A SEGURANÇA DE LER ESTE LIVRO
Se o veneno, a paixão, o estupro e a punhalada
Não puderam bordar com seus curiosos planos
A talagarça vã dos destinos humanos
É que nossa alma enfim não é bastante ousada
Charles Baudelaire
Certo dia, ainda adolescente, reuni alguns amigos de esbórnia, com o firme propósito de massacrar o tédio. O resultado, além da avassaladora ressaca alcoólica, foi um conjunto de lembranças confusas e, talvez, esta história. Tudo começou na praia. Entre o chacoalhar de um copo e outro, filosofávamos sobre comportamento humano, com a dionisíaca euforia do uísque. A variação de conceitos e a divergência de opiniões deveriam ter criado abismos entre nós. Mas, alguém teve a idéia e decidimos iniciar o jogo: testaríamos nosso caráter analisando supostas reações individuais diante de situações de extremo risco, inspiradas em livros, filmes ou simplesmente tiradas dos noticiários. Puro exercício de imaginação.
Combinamos as regras de pontuação a partir de um raciocínio assumidamente maniqueísta e, legitimados por condições hipotéticas suficientemente nobres para nos tirar o peso da culpa, partimos para a aventura cerebral. Um assalto a banco era o ponto de partida. Logo que a brincadeira começou, percebi que só haveria vencidos. Mesmo assim prossegui, movido sei lá por quais intenções, trocando idéias mirabolantes que, aos nossos olhos, formavam magicamente o plano do crime imperfeito que iríamos executar.
Talvez esperasse algo positivo ao final. Mas o que sobrou daquela noitada etílica serviu apenas para trazer à luz o quanto de terrível e cruel pode irromper na mente de quem se vê acuado no jogo da vida. No fim de tudo, sem confessar, temíamos uns aos outros e eu temia pela minha descoberta. Não poderia mais confiar em ninguém. Havia experimentado, através daquela sinistra brincadeira, um exercício de maquiavelismos que jamais imaginara. Entretanto, rompendo a sinergia dos maus fluidos, minhas rotas no oceano da existência levaram-me para longe dos outros jogadores. Em ensolarados oito anos de Brasil, vivi um navegar intenso e quase sempre extasiante. Ao atravessar o asfalto entre uma praia e outra juntava em poemas os versos divertidamente loucos que a vida me ditava. Do jogo mórbido, na memória, quase nada sobrara. Eu respirava um verão de alma e me nutria de uma felicidade docemente despreocupada.
Por obra mais do ocaso que do acaso, um dos jogadores me apareceu ostentando um sorriso largo e luminoso debaixo do olhar bandido. Aquele encontro em São Luís fazia renascer uma antiga alegria e de pronto, como nos áureos tempos das grandes farras, sugeri que fôssemos a certo bar da Praia Grande. Éramos dois viajantes do fim do mundo, com as naus lado a lado no porto mágico do fim da tarde. Assim que os uísques chegaram, contei a ela sobre o meu Anjo na Fauna, estendendo-lhe o mais rápido que pude um exemplar matreiramente autografado. Ancorados na mesa tosca, conversamos poesia, música, viagens e – devo admitir –, resisti em perguntar-lhe sobre o jogo não mais que o tempo de três rodadas. Quando o fiz, fui dissecado por um olhar miúdo e informado de um jeito mudo que não falaríamos sobre o assunto.
Já andava às voltas com o quinto uísque quando, sem qualquer resistência, me deixei conduzir pelos escuros e tortos caminhos de uma narrativa assombrosa. As explanações da moça – não obstante o largo consumo de bebida –, eram feitas de forma absolutamente comedida e minhas reações, controladas por cuidadosa embriaguez. O quadro, contudo, fazia-se complexo, com imagens sobrepostas e situações recorrentes.
Não tardei a ser fisgado pela essência diabolicamente literária de sua história – ainda que me inquietasse uma terrível relação com o jogo da juventude. Decidido a escrever sob inspiração de suas narrativas, engendrei outros encontros para ouvi-la e durante dias me entreguei às suas histórias. Sem esperança nem temor, juntei em anotações tudo que retive, não me importando padrões de comportamento, princípios éticos ou morais ou seja lá o que for. Tudo é para ser dito. Realidade e imaginação. Mentira e verdade. Insanidade e razão. É assim que escrevo. É assim que quero escrever.
Instigado pelo delírio, O Plano bebeu abundantemente no copo da vida, antes de tombar embriagado e manchar a brancura virgem das páginas que advêm. E, tendo eu acrescentado às impressões resultantes de minhas estranhas audições, as pinceladas mais cintilantes e cruéis da fantasia, sinto-me no dever de precaver o leitor quanto aos possíveis abalos. A maldade está por toda parte, descaradamente explícita ou maliciosamente oculta. Tudo quanto é humano conspira. E, se não o é, também. As trilhas em que os episódios se sucedem são escorregadias e obscuras, embora permitam viajar a partir de qualquer ponto, em qualquer direção, dispensando a linearidade. Quase sempre é noite e quase sempre chove, mas, mesmo sob o sol, cada história leva a uma armadilha e cada armadilha, a uma nova história.
Logo à frente, revestida de enigmáticos ímãs, está a trama que gira. Nem tudo que se diz é verdade. Nem toda verdade faz sentido. Uma virgem sodomita e um suíno gordo apaixonado. Uma cantora de blues e um terrorista desmemoriado. Potestades em conflito, loucos, bandidos, aflitos... Para juntar as peças e saber no que vai dar, é preciso, antes, superar as flechas geladas do medo. Por trás desta página, rangem os portais dos reis do inferno e marcham contra nós os seus estandartes. Vencidos os embargos, lasciate ogni speranza voi ch’entrate! (1)
O PLANO - Marcello Chalvinski - Brancaleone Ed.- 2007 (ADVERTÊNCIA AO LEITOR)
(1) Vós que entrais abandonai toda esperança.
Inscrição à porta do Inferno, na Divina Comédia,
de Dante.
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