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Friday, April 19, 2013

SOMOS TODOS POETAS





Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.





Murilo Mendes

Monday, November 07, 2011

SOB O SIGNO DE AURÉLIO







“Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...”


João da Cruz e Sousa







O bairro onde Aurélio Francisco morava era de lascar. Havia de tudo entre o armazém bananeiro e os cabarés: tráfico, jogatina, terreiros de umbanda, igrejas evangélicas e Deus sabe mais o quê. Não bastasse lixo e esgoto a céu aberto, novas e enormes crateras se formavam a cada dia, estrangulando o tráfego e aumentando o caos na altura da Rua dos Turcos. Reclamar ninguém podia. Eram tempos de ditadura.
Homem simples, Aurélio ganhava a vida como eletricista de uma companhia privada e somava ao salário os rendimentos da sorveteria Azul Anil – um pequeno negócio que mantinha na parte da frente da casa, com a ajuda da mulher, Catarina. Moça meiga e muito bela, “Catinha” preparava os sorvetes, atendia com presteza os poucos fregueses e ainda dava conta dos trabalhos domésticos. Parecia viver a lírica alienação da vida na periferia, com suas rotinas inquebrantáveis e a inexorável companhia das músicas sertanejas.
Aurélio definia-se como homem reto. “Di casa pru selviçu, do selviçu pra casa”, gostava de dizer com seu jeito capiau. Pouco dado a farras e à companhia de amigos, não saía nem mesmo nos fins de semana. Quando muito, convidava uns parentes pra comer um bode ou mesmo um pato, sob as árvores do seu imenso terreno. Era colocar as caixas acúisticas na varanda e pronto. A casa era seu maior orgulho – herança do pai, o velho Aurélio Chicó. O grande prazer de Aurélio era gabar-se da imponência de sua morada, ainda que invariavelmente acabasse por se aborrecer com os comentários de Catinha,sobre a péssima conservação do imóvel.
O casal respirava uma atmosfera de razoável harmonia, mas o fato de não terem filhos causava incômodo ao sacerdote e dava assunto para os vizinhos mais afeitos a comentar experiências alheias. Todavia, Aurélio e Catinha não se perturbavam. Quando o assunto lhes chegava aos ouvidos, ela erguia as mãos para o céu e dizia que tudo dependia da vontade de Deus, renegando veementemente o fato de que fazia uso de contraceptivos. Aurélio, por seu turno, gostava de dizer: “O negócio é ardquiri patrimonho. Dispois a gente vê...” e logo mudava de assunto.
Numa segunda-feira cinzenta, porém, Aurélio pôs-se de pé mais cedo que o costume. Ligou a vitrola e, pela primeira vez na vida, sentiu o real desejo de ser pai. Indiferente à umidade e aos insetos, passeou lentamente sob a copa das árvores embalado por ensurdesedores decibéis de música brega. Parou subitamente ao fitar um rasgo de céu e, movido do que seria uma profética visão, idealizou o herdeiro: “Sementi forti. Um varão di dá inveja. Homi séro, corajoso, galanti e dominadô. Fio legítimo di gente lutadora e di respeito. Vai ser um cabra vencedô”.
Aurélio estava de fato decidido a engravidar a mulher. Fazendo pequenas contas de cabeça, planejou economizar o necessário para a chegada do primogênito. Já pensava até onde matricularia o menino, quando Catinha – surpresa ao vê-lo divagando àquela hora –, tratou de chamá-lo para o café. Atendendo a seus apelos saturados de meiguice, Aurélio não se fez de rogado. Nutriu-se de café e beiju e partiu para a labuta. Cruzou com prostitutas que voltavam ao cabaré arrastando sandálias ordinárias desafiveladas, esbarrou nos homens suados do armazém bananeiro e seguiu para o ponto do ônibus, sem parar de pensar na melhor forma de contar a “sua decisão” para Catinha.
Após toda a manhã de um trabalho cansativo e irritante, Aurélio sentou-se com outros operários de marmitas à mão. Nem bem iniciou o almoço e o encarregado lhe comunicou que deveria comparecer ao departamento de pessoal. Estava demitido. Colérico, não terminou a refeição, nem quis se despedir dos colegas. Comprimiu-se no velho ônibus sucateado, perfeitamente resolvido a “tomá uns trago pra isfriá a muleira”.
No botequim do “Seu Irmão”, perguntado sobre o que fazia àquela hora “zangado e ainda por cima bebendo”, Aurélio acabou contando seu drama de desempregado. Bartô – o velho carroceiro que o inquirira –, bateu o copo no balcão e comentou com todas as farpas da ironia: “É, meu cumpadi. O negócio não tá bom pro teu lado não. Mais essa agora, hein? Se eu fosse ocê, abria dos óio e mandava batê um belo dum tambô, que é pra quebrá as urucubaca, tá me ouvindo? ”
Aurélio fez pouco caso da conversa puxada por Bartô, mas decidiu que era hora de ir para casa. Pagou a conta e saiu apressado, com a boca recendendo a cachaça e a cabeça a esquentar-lhe as preocupações. A recessão que convulsionava o país arrastava famílias inteiras à miséria. Vitimado pelo desemprego em época tão hostil, via que o sonho do herdeiro iria escorrer como água entre seus dedos. Eram quase três da tarde e o mesmo calor que afastava as pessoas da rua ajudava a compor a inquietude que lhe torturava. Trocou passos aflitos, esbarrou nos homens suados do armazém bananeiro e passou pelos cabarés adormecidos. Teve um sobressalto ao se deparar com uns garotos que saíam correndo de sua casa, mas julgou que houvessem invadido à cata de mangas e relaxou.
Achou estranho o fato da sorveteria ainda estar fechada. Atravessou o jardim e seguiu apreensivo quintal adentro imaginando encontrar a mulher em alguma tarefa inesperada e urgente. Afinal, não havia desculpas para tamanho descuido. Driblando os pilares da caixa d’água ao som de uma melodramática música brega, Aurélio rumou para a lavanderia, que ficava ao fundo. Apesar do alto volume da música, pode distinguir uns gemidos abafados e o medo de que algo terrível estivesse acontecendo amargou-lhe a boca.
Esgueirou-se pelo poço observando atentamente. Súbito, o espanto branqueou-lhe a face. Por entre a folhagem, viu o rosto crispado da mulher, com a boca tapada por uma peça de roupa e fortemente comprimido sobre o tanque. Correu até ela aflito e tomou um susto ainda maior ao perceber o que de fato acontecia. Sua amada Catinha, a mulher que lhe daria o filho de seus sonhos, estava sendo violentamente sodomizada pelo quitandeiro Zé Dionísio. Possesso, Aurélio olhou para os lados e, encontrando uma estaca, partiu para cima de Zé Dionísio gritando alucinado.
– Feladaapuuuta!
Zé Dionísio, crioulo forte e sestroso, soube livrar-se dos ataques de Aurélio e na primeira oportunidade sacou do revólver e atirou sem hesitar. Catinha, destapando a boca, atirou-se em desespero sobre o peito ensangüentado do marido. Aurélio estava tomado de silêncio. Não sentia dor alguma. Não ouvia nem música, nem som algum. A histeria da mulher que se descabelava sobre seu peito não lhe inspirava qualquer sentimento. Tudo que havia para ele era a dança muda que o sol ensaiava nas folhas da mangueira. Depois veio o frio e, ao fim, a escuridão.
A vizinhança adentrou a casa tão rapidamente após os disparos, que boa parte dos intrometidos ainda assistiu a fuga de Zé Dionísio. Após um momento de estupefação, Dona Otília vestiu a mulher e o turco Farad tratou de levar o ferido para o pronto-socorro.
Muitos dias depois, sem que Catinha deixasse a casa para saber do marido ou para o que quer que fosse, Aurélio surgiu. Ombro enfaixado, braço na tipóia e entupido de remédios, retornava à casa envolto em silêncio. Apesar da gravidade do ferimento, havia se recuperado de forma excepcional. Trocou passos envergonhados, cuidou de não esbarrar nos homens do armazém bananeiro, cruzou com prostitutas que voltavam ao cabaré arrastando sandálias ordinárias desafiveladas e seguiu de olhos baixos sob os olhares maliciosos dos vizinhos. Logo que entrou em casa tratou de insultar a mulher. Vendo que ela não dizia palavra, irou-se ainda mais. Pegou o grosso cinturão de couro que usava no trabalho e bateu até vê-la coberta de hematomas. Chorando copiosamente, Catinha implorou para que ele ouvisse as suas palavras. Suado, ofegante e com o braço extenuado de tanto bater, Aurélio sentou-se para ouvi-la.
– Olha, eu sei que num é fácil pra ocê, mas ocê tem que deixar eu falar. Se eu num falar vai ser bem pior e dispois...
– Fala logo, qui já ta mi esquentando a muleira...
– Ta bom. Olha, olha... ocê sabe... eu tenho aquela minha irmã doente e... bom... ela tá pra morrer e os médico mandaram ela pra casa... ela num tem mais muito tempo e então eu queria que ao menos uma vez na vida ela tivesse um pouco de vida boa, de poder comer coisa boa e...
– Desembucha logo. Onde é que tu qué chegá?
– Calma, calma. Olha... eu comprei muita coisa pra minha irmã. Muita coisa mesmo, que eu mandei pra ela e...
– Fala logo disgranhenta!
– É que eu comprei tudo fiado no Zé Dionísio e num pude pagá. Se eu num desse pra ele, ele ia te conta tudo aí...
– Disgramada dos inferno, tu tem o quê nessa cabeça de merda? Puta de merda, égua filha-duma-puta, porra dum cacete...
Aurélio esbravejou, humilhou e agrediu a mulher por cerca de meia hora. Depois, ameaçando-a com uma faca, fez com que ela se despisse e expulsou-a de casa. Catinha correu para fora dos limites do bairro, histérica e nua, desaparecendo sem deixar qualquer indicação de seu destino. Para a vizinhança foi o prato do dia. As comadres lideradas por Dona Otília juntaram-se sob a sombra de uma mangueira e se persignaram repetidas vezes, entre comentários temperados de ácida hipocrisia. Alguns dos homens do lugar se aproximaram do conturbado Aurélio, quase na mesma hora. O velho João da Lapa foi quem falou, cumprimentando-o com a língua pesada e o hálito saturado de cáries:
– É isso aí Auréi. A rente tá do teu lado. Ocê fez o que quarqué um faria. Tomou uma atitude de macho. Se tu num faz isso, aí é que era pra ti... Corno consciente é o pior que tem. Tu pelo meno serrou o teu...
As palavras de João da Lapa assombraram a mente de Aurélio durante os três meses em que se manteve isolado no interior de sua velha casa. Só se sabia que ele estava vivo, por conta de sua inquebrantável rotina de ouvir músicas sertanejas. Quando as chuvas começaram, o deslustrado Aurélio recebeu a visita de alguns parentes. Queriam que ele reativasse a sorveteria, que voltasse a trabalhar, essas coisas. Tudo em vão. Afundado em sua insuportável vergonha, Aurélio gastava os dias a beber e lastimar sua desgraçada “sorte de corno”.
Já pelo fim do período chuvoso, invadiu o bairro uma incontrolável nuvem de moscas. A praga foi tão grande que as igrejas e os terreiros não puderam realizar cultos por quatro dias. Os barbeiros eram obrigados a revisar várias vezes as barbas dos fregueses, pois mal tiravam a navalha, as moscas assentavam com velocidade vertiginosa. Os animais, em especial os cães e burros, pareciam negros devido ao moscaréu que os cobria. Comer sem engolir alguns insetos era tarefa impossível e a irritação tomava conta das pessoas. Por conta disso, pensou-se em pedir auxílio ao governo. Mas o simples fato de promover uma reunião poderia ser considerado conspiração e a hipótese de solicitar ajuda foi logo descartada. Muitas armadilhas foram desenvolvidas e muitos venenos foram aplicados sem que se notasse êxito. As pessoas já se viam obrigadas a adaptar-se à situação, quando os coaxos dos sapos sobrevieram e as coisas deram sinais de melhora.
O antigo comércio de Zé Dionísio reabriu, transformado em bar. Era lá, ironicamente, que Aurélio gastava agora a maior parte do tempo. Em geral, era atendido por Fábio – um garoto muito risonho que parecia se compadecer de seu alcoolismo decadente e tentava a todo custo animá-lo a mudar de vida. Pouca gente freqüentava o lugar, mas mesmo assim a música era de ensurdecer, dia e noite. O canto esquerdo do balcão, junto a uma pilha de armadilhas pega-mosca, era o sítio favorito de Aurélio. Sorvendo aguardente por entre os espaços dos dentes sujos, ele remoía a traição da esposa buscando justificativas que pudessem dar paz à sua alma. Bastava embriagar-se para cair em pranto. Contudo, pior era seu sofrimento aos fins de tarde, quando Boca de Cabelo, o dono do bar, chegava. Era um tipo grandalhão, dono de espessa barba negra e que, em seu cinismo manifesto, regozijava-se em despejar sobre ele toda sorte de zombarias e provocações. Aurélio nunca reagia, por mais que lhe doesse a agressão. Para ele, era como estar cumprindo um castigo merecido e, afinal, encarar Boca de Cabelo não era mesmo tarefa fácil.
Atravessando um meio-dia ardente, no mês em que os capirotos aproveitam o asfalto para fritar serpentes, Aurélio chegou até o bar. Tinha vendido um congelador e estava decidido a tomar umas cervejas para variar. Da porta, porém, estancou e assistiu à humilhante demissão de Fábio, protagonizada pelo truculento Boca de Cabelo. Sabia que Fábio não tinha parentes que pudessem ajudá-lo, nem lugar para onde pudesse ir. Consternado, atravessou a rua e aguardou a saída do rapaz sob a sombra de um poste. Assim que o viu tratou de convidá-lo a pernoitar em sua casa. O garoto aceitou sem hesitar e os dois seguiram atravessando as pinguelas da Rua da Vala. Num lampejo súbito, Aurélio animou-se. Queria reabrir a sorveteria e recomeçar a vida, contando com a ajuda de Fábio. De fato, resolveram consolidar um compromisso de auxílio mútuo e seguiram abraçados pela rua dos Turcos, sonhando dias melhores.
Na porta de entrada da casa, entretanto, estava Catinha. Indizivelmente bela, mantinha-se grudada à grade do portão com os olhos muito abertos e brilhantes. Durante algum tempo permaneceu calada, como se esperasse uma reação de Aurélio. Ele, por seu turno, trocou um olhar de grave cumplicidade com Fábio e tentou passar ao largo da ex-mulher. Inútil. Catinha atirou-se sobre ele, chorando copiosamente o seu amargo arrependimento. Dizendo-se preocupado com novos vexames, Aurélio pediu ao garoto que o aguardasse no jardim e conduziu a mulher para o interior da casa. Os dois conversaram horas a fio, enquanto Fábio com o apetite que lhe era peculiar comia uma manga após outra. Por fim, Aurélio chamou-o e, agarrado a Catinha, comunicou sua decisão de voltar a viver com ela. O garoto, acreditando que Aurélio declinaria da proposta que lhe havia feito, exalou um ar desconsolado. Aurélio, todavia, fez questão de manter de pé sua palavra e confirmou Fábio como seu fiel ajudante nos negócios da Azul Anil.
A alegria parecia iluminar a velha casa. Aurélio ordenou que Fábio matasse um bode e dois patos e preparou, ele mesmo, a lauta refeição comemorativa. Beberam uma aguardente violácea feita de mandioca, dançaram sobre os ossos descarnados do banquete e sucumbiram ao sono profundo imposto pelos corpos extenuados. A música brega atingia volumes ensurdecedores anunciando que a vida havia recuperado o sentido para eles.
Os comentários escabrosos dos vizinhos retomariam atividade, agora em escala industrial. Só se falava “lunado” e sua “esposa chifreira”. Ninguém podia aceitar que o sujeito reatasse uma relação tão violentamente destruída pelo adultério. “Grande é o castigo do corno!”, dizia Bartô. “Desavergonhada!”, repetia Dona Otília. O sacerdote tentou aquietar as fiéis mais revoltadas e chegou a fazer sermões sobre matrimônio, arrependimento e perdão. Mas isso de pouco resolveu. Consideravam a bela Catinha “mais indigna e repulsiva que as putas do cabaré”.
Sem se ocupar com as maledicências, o casal arregaçou as mangas e retomou o negócio da sorveteria, sempre com a colaboração irrestrita de Fábio. Aurélio tanto fez que arrumou emprego nas centrais elétricas do governo e voltou a sonhar com uma vida tranqüila e segura ao lado da esposa. Estava mais confiante do que nunca. Em pouco tempo, reformou a casa e ampliou a sorveteria, que finalmente passara a dar lucro, graças ao asfaltamento da rua. Os vizinhos, mantidos à necessária distância, não importunavam tanto. Comentários maldosos só chegavam aos ouvidos de Aurélio através de um ou outro bêbado desabusado. Mas ele já não ligava. O sacerdote, que voltou a freqüentar-lhe a casa, falava da necessidade de filhos no casamento e aquelas coisas que sempre falava quando, por instantes, conseguia ficar sem comer ou beber. Certo é que Aurélio voltou a sonhar com o herdeiro fabuloso. Numa quinta à noite, sentindo a vida estabilizada, confidenciou a Catinha o seu renovado desejo. A reação da mulher superou suas expectativas, fazendo com que vivessem momentos de intensa alegria. Antes de adormecer, já na sexta-feira, Aurélio teve a idéia: faria uso das férias que estavam vencendo e proporcionaria uma viagem de lua-de-mel para a esposa, a fim de gerar o filho desejado. Iriam de ônibus para o interior e Fábio ficaria tomando conta de tudo. Era perfeito. Seria uma grande surpresa.
Oito dias depois, muito animado, assinou as férias, passou no banco e voltou pra casa, já com as passagens no bolso. Mal podia esperar para ver a reação da esposa. Esbarrou nos homens suados do armazém bananeiro, cruzou com prostitutas que voltavam ao cabaré arrastando sandálias ordinárias desafiveladas, e atravessou a rua dos Turcos sem tocar os pés no chão. Como a sorveteria estivesse fechada, voou para a cozinha a fim de surpreender a mulher. E surpresa foi o que teve ao encontrar Catinha sorvendo com gemidos de êxtase e boca gulosa as últimas gotas de sêmen do pênis de Fábio. Entorpecido pelo gozo, o garoto não percebeu a aproximação de Aurélio, que com uma cadeira desferiu-lhe violento golpe. Catinha, em seminudez, correu para a rua aos berros de “não me mata, não me mata...”, despertando a atenção das comadres mais e, desta vez, até das menos mexeriqueiras. Aurélio demorou a segui-la e quando o fez, percebeu que não iria alcançá-la. Incrédulo e desesperado, esfregava incessantemente as mãos no rosto sem saber que atitude tomar até que, diante da pequena multidão que se formara, subiu em um poste e tentou agarrar-se aos fios eletrificados. A descarga, porém, atirou-o ao chão. Com os olhos pregados no zênite, Aurélio pode ouvir, segundos antes de desfalecer, a voz de Bartô a repetir: “Grande é o castigo do corno!”.
Meses se passaram até que ele pudesse deixar o hospital. Tetraplégico, foi levado de volta à casa, pela própria Catinha que, sem nenhum rodeio confessou-lhe estar grávida do jovem amante. A raiva que sentiu pela traição era menor que a decepção de não ser ele a gerar o herdeiro. Aprisionado no próprio corpo, Aurélio não conseguia sequer articular palavra. Sua percepção do mundo e sua relação com ele reduziu-se a ver e ouvir. Paralisado, veria Fábio assumir a casa, dominar a mulher e executar transformações no imóvel, que ele jamais aprovaria. O menino, batizado com o nome de Fábio Francisco, ganhou o apelido de Chicó e desde cedo, se envolveu em inúmeras brigas e confusões por conta do aviltante tratamento que recebia dos colegas e vizinhos. Marginalizado e invariavelmente espancado pelo pai biológico, não tardou a delinqüir e a freqüentar institutos correcionais. O primeiro deles, logo após o golpe, quando foi formado um Comitê de Governo, responsável por conduzir a chamada contra-revolução. Na prática, era o esforço para reestruturar as antigas bases sócio-econômicas, garantindo os privilégios da burguesia, dos latifundiários e principalmente do capital internacional. Epidemias, fome e perseguição política marcariam o período. Por volta dos 20 anos, mais ou menos quando o Comitê criou o D.A.P.U. – polícia política responsável pela repressão ao inimigos do Regime –, Chicó juntou os pertences numa trouxa e fugiu com um circo de lona velha. Vitimado pela dengue, com o corpo em febre e a alma enregelada, deixava para trás a desleixada mãe que, em companhia de Fábio, manteria vivo o fantasmagórico Aurélio, pelo resto de sua triste vida. Levou consigo uma garrafa de aguardente, um rádio e a inexorável companhia das músicas sertanejas.

Tira-gosto